Tortura e escravidão em caso de trabalho doméstico infantil

Justiça condena empregadora por abusos durante quase três anos. Vítima sofreu violência física, trabalhou sem receber e foi impedida de estudar ou ver a mãe

Por Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil

A 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) condenou, em 18 de julho, Maria Aparecida da Rocha a 6 anos e 8 meses de prisão em regime inicial semiaberto, por torturar e reduzir à condição de escravo uma adolescente dos 15 aos 18 anos. A decisão foi publicada na última segunda-feira (22). Segundo a denúncia do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) que culminou na condenação, a menina foi vítima de abusos físicos e mentais enquanto prestou serviços domésticos à condenada no período entre 2004 e 2007, na região administrativa de Riacho Fundo II, ao sudoeste de Brasília (DF).

A jovem, com então 15 anos de idade, teria deixado sua cidade natal, Santo Antônio do Descoberto, em Goiás, para ir trabalhar na casa da Maria Aparecida da Rocha, em agosto de 2004. Até fevereiro de 2007, a adolescente sofria ameaças verbais e violência física, sendo vítima de lesões provocadas por facas e alicates. Depois de três tentativas, ela conseguiu deixar o local após contatar seu tio, que imediatamente acionou a polícia. Junto dele, ela foi para Teresina, no Piauí.


Percurso entre a cidade da vítima e a casa em que foi escravizada. Exibir mapa ampliado

De acordo com o MPDFT, durante esse período de quase três anos a empregadora teria impedido que a jovem deixasse a residência em que trabalhava e pudesse ver a própria mãe. Ainda segundo a denúncia, os serviços nunca eram remunerados, e o acesso à escola, proibido. Há relatos de que a acusada usaria da menina também para oferecer serviços a outras residências.

Em declaração à Justiça, a vítima relata sucessivos abusos e agressões pelas quais passava. “A acusada, diariamente, por qualquer pequeno motivo ou pretexto, passou a surrá-la”, descreve o depoimento. Fios, facas e martelos teriam sido utilizados para provocar golpes desde o pescoço até as costas da adolescente. A menina começava a trabalhar todo dia por volta das duas da manhã, quando era acorda por agressões. Por não conseguir descansar tempo suficiente, ela conta que ficava o dia inteiro sonolenta, e isso seria motivo de ainda mais violência.

Trabalho doméstico infantil

O trabalho doméstico está previsto na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), criada pelo decreto 6.481 assinado em junho de 2008 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com base na Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em setembro de 2011 haviam pouco mais de 250 mil crianças e adolescentes exercendo atividades do tipo por todo o Brasil: 67 mil na faixa de 10 a 14 anos, e 190 mil na faixa de 15 a 17 anos.

Desse total, pelo menos 90% seriam do sexo feminino.


Vídeo institucional do Ministério Público do Distrito Federal contra trabalho infantil

Defesa
Contra os argumentos da promotoria, a ré alegou insuficiência de provas para a condenação, mas a Justiça não aceitou a apelação. Os magistrados mantiveram, na íntegra, a decisão condenatória proferida em primeira instância, e não acataram o recurso interposto pela defesa de Maria Aparecida da Rocha.

Para o desembargador Roberval Belinati, relator da condenação, os laudos de corpo de delito e as fotos anexadas nos autos da denúncia não deixam dúvida dos abusos cometidos contra a jovem. “As provas comprovam que a vítima foi submetida a ilegal e intenso sofrimento físico e mental, durante vários anos, como forma de castigo pessoal, em condições degradantes de alimentação, acomodação e trabalho, sem receber qualquer remuneração”, assinalou.

O magistrado observa, além disso, que a acusada manteve a menina presa e sem acesso a comunicação. “Além do trabalho excessivo, a acusada ainda a impedia de se comunicar com a família, restringindo sua liberdade de locomoção”, acrescenta.

Tortura e trabalho escravo

Restrições à liberdade de ir e vir e trabalho forçado são duas definições previstas para as formas de escravidão contemporânea, tipificadas no artigo 149 do Código Penal brasileiro. A pena prevista pela lei prevê reclusão de dois a oito anos, bem como multa. Em casos em que a exploração de mão de obra análoga à de escravo envolve vítimas com menos de 18 anos, a punição é aumentada da metade.

Na última atualização do cadastro de empregadores flagrados com o uso de trabalho escravo, a “lista suja” do trabalho escravo, mantida pelo governo federal, há pelo menos oito casos em que o crime de reduzir pessoas à escravatura aparece junto da exploração de crianças e adolescentes.

O crime de tortura, por sua vez, está prescrito na lei 9.455/1997, sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. A prática é inafiançável e não anistiável, além de ser considerada crime hediondo e contra a humanidade. Para casos em que as vítimas são crianças, adolescentes, gestantes, idosos ou pessoas com deficiência a pena é aumentada em um sexto a um terço do total determinado pela Justiça.

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Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Mobilização global contra o trabalho infantil doméstico

No Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, relatórios destacam gravidade do problema. Segundo OIT, essa forma de exploração atinge 15,5 milhões de crianças e adolescentes

Por Stefano Wrobleski, da Repórter Brasil

No Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, celebrado nesta quarta-feira, 12 de junho, organizações da sociedade civil e autoridades se mobilizam para chamar a atenção para o trabalho infantil doméstico. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que publicou relatório destacando a gravidade da exploração de crianças e adolescentes em residências, o problema afeta aproximadamente 15,5 milhões em todo o mundo. São meninos e meninas sujeitos a violência, abusos sexuais e doenças físicas e mentais, e que têm dificuldades e/ou não conseguem acompanhar a escola. O trabalho infantil doméstico também foi tema de relatório publicado pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), e de um dos capítulos do relatório “Brasil livre de trabalho infantil”, lançado recentemente pela Repórter Brasil.

Baixe os relatórios:
OIT – Erradicar o trabalho infantil no trabalho doméstico (em inglês, espanhol e francês)
FNPETI – O trabalho infantil doméstico no Brasil
Repórter Brasil – Brasil livre de trabalho infantil

Das 15,5 milhões de vítimas de trabalho infantil no planeta, 5 milhões de crianças e adolescentes são exploradas em países que não proíbem a prática e que, portanto, não ratificaram a Convenção 182 da OIT, que a proíbe de ser desempenhada por menores de 18 anos. Conforme a convenção, a atividade é considerada uma das piores formas de trabalho infantil. O relatório também lembra a Convenção 138, que define a idade mínima para admissão em 15 anos, independentemente da profissão. Apesar de ter sido ratificada por 161 países, quase metade (7,4 milhões) dos 15,5 milhões de trabalhadores domésticos com menos de 18 anos têm entre 5 e 14 anos.

A questão não pode ser entendida “puramente em termos de direitos da criança ou como um problema trabalhista”, lembra o relatório, citando que, de todos os 776 milhões de analfabetos no mundo, dois terços são mulheres. O dado reforça o argumento de que existe uma grande diferença entre as oportunidades de trabalho para mulheres e homens jovens. “A posição de subordinação e marginalização das garotas em muitas sociedades compõe os problemas que elas enfrentam no mercado de trabalho”, diz o estudo. Entre os que têm menos de 18 anos ocupados no trabalho doméstico, 73% são mulheres.

Debates e lançamento de campanha no Brasil

Uma série de debates, atos e ações foram marcados para a semana de 12 de junho, o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil. A Fundação Telefônica Vivo, parceira da Repórter Brasil no especial Meia Infância, deu início a uma nova etapa da campanha “É da Nossa Conta!”, com eventos focados nas regiões Norte e Nordeste, regiões com os maiores índices de trabalho infantil. Leia na Rede Promenino.

A OIT e o FNTEPI, em conjunto com outras entidades, iniciaram a campanha “Tem criança que nunca pode ser criança”, que pode ser conferida clicando aqui.

Já o MPT lançou a campanha “Trabalho infantil não é legal”, com inserções nos meios de comunicação (veja vídeo abaixo). O órgão também preparou atividades no Amazonas, Maranhão, Paraná, Mato Grosso, Rio Grande do Norte e Ceará (clique para saber mais sobre os eventos e confira o vídeo abaixo).

No Brasil
Apesar de ter ratificado as convenções 182 e 138 da OIT em 2000 e 2001, respectivamente, o país ainda tem 258 mil crianças e adolescentes ocupados em trabalho doméstico. Os dados são do IBGE e foram organizados no relatório do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).

De acordo com Rafael Dias Marques, coordenador nacional do programa de combate ao trabalho infantil do Ministério Público do Trabalho (MPT), a pobreza já não é mais a causa essencial no Brasil para a existência de trabalho infantil. Segundo ele, aproximadamente 40% das famílias que exploram esse tipo de mão de obra não está na faixa de extrema pobreza atualmente. “A pobreza está hoje aliada ao desejo de acesso das crianças e adolescentes ao bens de consumo, o que conduz também a uma entrada precoce ao mercado de trabalho”, diz. Ele também defende que o país faça fortes investimentos para atender às crianças e às famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza. O coordenador ainda ressalta a importância de campanhas de conscientização como forma de romper com a aceitação social existente em relação ao trabalho infantil.

Os dados do relatório produzido pelo FNPETI mostram que a região que concentra o maior número de crianças e adolescentes em trabalhos domésticos é o Nordeste, com 39,8% do total. Quase todos os jovens são mulheres (93,7%), a grande maioria é de negros (67%) e está em meio urbano (79,3%). Veja mais no infográfico abaixo.

Trabalho perigoso
Quase metade das crianças vítimas de trabalho doméstico estão submetidas a condições que podem afetar sua saúde, segurança ou integridade moral, além de jornadas de trabalho de mais de 43 horas por semana. Outros perigos incluem trabalho noturno e exposição a abusos físicos ou sexuais, mas não existem dados confiáveis sobre isso, segundo o relatório, que também cita um estudo feito no Brasil revelando que as crianças envolvidas em trabalho doméstico têm muito mais chances de sofrer com dores osteomusculares do que as empregadas em outros setores.

A OIT conclui que “a pobreza está invariavelmente por trás da vulnerabilidade de uma criança ao trabalho doméstico” e o “trabalho infantil doméstico não é simplesmente uma preocupação das crianças, suas famílias e comunidades”. Por isso, deve ser combatido com políticas amplas de desenvolvimento e decisões sobre a alocação de recursos orçamentários. Além disso, a entidade aponta ser importante também a criação de leis que estendam aos trabalhadores domésticos os mesmos direitos de outras categorias porque “a proteção a trabalhadores domésticos jovens e o avanço para a eliminação do trabalho infantil doméstico estão interrelacionados e se reforçam mutuamente”.

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Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Pequenas domésticas, a violação invisível

Mais de 250 mil crianças e adolescentes realizam trabalhos domésticos no país, situação “aceita” pela sociedade e de difícil fiscalização. Quase 94% desse total são meninas

Por Igor Ojeda, da Repórter Brasil

Todos os dias, quando Cristina* acordava, o mundo ainda estava escuro. Era rotina: inclusive aos sábados e domingos, a garota de 12 anos levantava às quatro e meia da madrugada. Não dava tempo de ficar rolando na cama. Tinha de se aprontar logo e ir ao restaurante da tia ajudar com a arrumação. Só três horas depois, por volta das sete e meia da manhã, é que tomava banho para ir à escola.

Na hora do almoço, voltava ao restaurante, onde ficava até as quatro e meia da tarde limpando, ajudando no caixa, fazendo entrega. Mas seu expediente não terminava aí. Retornava à casa da tia e levava mais duas horas limpando, lavando, passando. Depois, jantava, fazia a lição de casa e ia para a cama. No dia seguinte, às quatro e meia, o despertador tocava…

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em setembro de 2011 haviam pouco mais de 250 mil crianças e adolescentes exercendo trabalhos domésticos por todo o Brasil: 67 mil na faixa 10 a 14 anos, 190 mil na faixa de 15 a 17 anos. Apesar de as trabalhadoras desse setor terem alcançado uma vitória histórica recentemente, com a entrada em vigor, no dia 3, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que garante os mesmos direitos trabalhistas de outros segmentos, o trabalho infantil doméstico ainda carece de visibilidade: especialistas destacam que esse é um problema que, apesar de grave, permanece oculto.

O trabalho infantil doméstico é uma das atividades incluídas na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP) criada pelo decreto 6.481, assinado em junho de 2008 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e baseado na Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Constam da relação 89 atividades, com suas descrições e consequências para a saúde de crianças e adolescentes que as desempenham. “Por ter sido incluído na Lista TIP, o trabalho doméstico não pode ser exercido por pessoas que não completaram 18 anos”, explica Isa Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).

Cristina, que aos 12 anos começou a trabalhar de doméstica. Foto: divulgação/Cendhec

Cristina, que aos 12 anos começou a trabalhar de doméstica. Foto: divulgação/Cendhec

Mundo escuro
… com o mundo igual de escuro, Cristina acordava, e o martírio se repetia. Alguns meses antes, a pequena pernambucana morava com a mãe, o padrasto e a irmã de dois anos no bairro da Mangueira, no Recife – tinha mais quatro irmãos por parte de pai. Apenas estudava. A mãe, uma moça de seus trinta anos, era doméstica e sustentava as duas filhas com a ajuda do marido, que fazia coleta de sangue numa clínica na cidade.

Foi então que começou a ter problemas de coluna, o que a impediu de continuar trabalhando. Os gastos foram ficando cada vez mais apertados quando veio a “solução”: a irmã do pai de Cristina estava precisando de alguém para ajudá-la em casa e no restaurante. Mandou a filha com mala e tudo para o novo lar, não muito longe dali, também na Mangueira…

Isa Oliveira cita os dados do Censo 2010 para ilustrar a gravidade da situação. Em todo o Brasil, das estimadas 3,4 milhões de crianças e adolescentes trabalhando, 7,5% realizam serviços domésticos. A região Centro-Oeste é a de pior incidência em números proporcionais (9%), seguida das regiões Norte (8,5%), Nordeste (8%), Sudeste (7%) e Sul (6%). Ela chama a atenção, no entanto, para a evidente subnotificação de casos.

“Esses dados não expressam toda a dimensão do problema porque o Censo não coleta informações sobre os afazeres domésticos, ou seja, o trabalho infantil doméstico nas próprias casas das crianças. Há uma dificuldade em relação a esse registro, porque na maioria das vezes não é identificado como trabalho, e sim como ajuda. Como as pesquisas são por autodeclaração, muitas vezes o adulto informa que as crianças não trabalham, porque o conceito de trabalho está ligado à remuneração. Porém, no caso de trabalho infantil doméstico, isso não é determinante, não há essa relação direta”, esclarece a secretária-executiva do FNPETI.

Rotina
… Cristina ia caminhando da casa da tia até o restaurante, no Jardim São Paulo, e do restaurante para a casa da tia. Andava também até a escola. Aos sábados, como não precisava estudar, trabalhava o dia todo, até as nove e meia da noite. Aos domingos, cumpria expediente até o meio-dia. Eram poucas as horas livres. Aproveitava para visitar a mãe, mas no mesmo dia à noite tinha de voltar. Afinal, na segunda-feira, às quatro e meia da madrugada… era hora de pegar no batente.

Por todo esse serviço, a menina recebia R$ 20 mensais. Não reclamava. A mãe tampouco, pois pensava que a irmã do pai de sua filha comprava tudo que ela precisava, como roupas novas. Cristina dava metade do que recebia à mãe, e ficava com a outra metade. Quando precisava de mais dinheiro, pedia ao pai. Para completar, a tia e o marido a tratavam mal diariamente. “Me xingavam de vagabunda porque eu não fazia o trabalho direito. Diziam que como estavam pagando, era para eu fazer direito”, conta. A pequena não aguentava mais…

De acordo com a Pnad 2011, do total das crianças e adolescentes no trabalho infantil doméstico no Brasil, 93,8% são meninas. Chama a atenção também o fato de a grande maioria destas serem negras. Tal perfil, no entanto, não surpreende se levadas em conta as características do trabalho doméstico no país, independentemente da idade de quem o exerce. Na realidade, especialistas apontam que grande parte das domésticas adultas começou a trabalhar antes dos 18 anos. Paulo Lago, do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), de Recife, explica que a desigualdade social e a miséria são as primeiras causas dessa situação. “A mãe prefere entregar a filha para trabalhar numa casa de família a vê-la morrer de fome.”

Isa Oliveira destaca que tais motivações estão ligadas a outros fatores, como o pouco acesso das crianças à educação de qualidade, principalmente nos pequenos municípios da área rural, e, também, a baixa escolarização dos integrantes adultos das famílias, que não percebem a educação dos filhos como direito e oportunidade. Além disso, há uma forte naturalização do trabalho infantil doméstico no país. “Existe uma espécie de camuflagem da exploração nesses casos. No Nordeste e no Norte, é muito comum crianças serem levadas do interior para casas de famílias nas capitais. A exploração do trabalho fica oculta sob o manto da proteção: ‘a menina veio estudar, tem casa, comida’ etc. É difícil até que a própria família e as crianças compreendam a situação de exploração”, diz Isa.

Violência
… um dia, o marido da tia, um policial, levantou a sandália para Cristina. Mas ela tinha perdido o medo. “Ele ia me bater, mas comecei a xingá-lo, dei um chute nele e fui embora”, lembra. Foi para a casa do avô. A menina continuou indo ao restaurante, mas uma semana depois não apareceu mais. A irmã do seu pai, furiosa, jogou todas suas roupas na rua. Não importava: depois de quase um ano, Cristina estava livre.

Ou quase. No novo lar, continuou a fazer os serviços de casa, para ajudar a esposa do avô. Mas lá a situação era melhor. Era tratada muito bem e recebia R$ 100 por semana. Acordava mais tarde e ia direto para a escola. Mesmo assim, quando voltava na hora do almoço, trabalhava bastante, pois não era “dispensada” antes de lavar a louça do jantar…

Wanderlino Nogueira Neto recebe o Prêmio Direitos Humanos 2011, do governo federal, na categoria Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

Wanderlino Nogueira Neto recebe o Prêmio Direitos Humanos 2011, do governo federal, na categoria Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

Durante o Seminário Internacional Infância e Comunicação, realizado entre 6 e 8 de março deste ano em Brasília (DF), Wanderlino Nogueira Neto, representante brasileiro do Comitê dos Direitos da Criança da ONU, afirmou que em relação ao Nordeste é possível falar até em escravidão nos casos de trabalho doméstico infantil, por causa das condições absurdas a que as crianças são submetidas.

“No Nordeste, infelizmente ainda é comum escravidão no trabalho doméstico, inclusive com castigos físicos”, disse ele, que foi procurador-geral de Justiça da Bahia. “A situação afeta até mesmo familiares. Estamos falando de escravidão mesmo e entre as vítimas estão crianças, incluindo irmãos e irmãs mais novas. É uma situação em que espancamentos são comuns.”

A presidenta da Federação Nacional das Empregadas Domésticas (Fenatrad), a baiana Creuza Maria de Oliveira, sabe bem disso, já que sentiu na pele tais violações desde que começou a trabalhar como doméstica, quando tinha apenas dez anos. “Eu fui vítima de espancamento, de assédio moral, abuso sexual, ato libidinoso… a gente sabe que isso acontece, que no Nordeste as crianças e adolescentes domésticas comem o resto da comida da casa, para não jogar no lixo.” Creuza frisa que as consequências do trabalho infantil doméstico são gravíssimas. A começar pela saúde de quem tem menos de 18 anos, que realizam um tipo de trabalho incompatível com o que seus corpos ainda em desenvolvimento suportam e lidam diariamente com produtos químicos utilizados na limpeza das casas. “Além disso, há o abuso sexual e o assédio moral. A autoestima das meninas fica destruída. Elas crescem com complexo de inferioridade”, alerta. Isa Oliveira, do FNPETI, lembra que a fadiga causada pelo trabalho e jornada exaustivos comprometem não apenas a frequência escolar como também o desenvolvimento cognitivo das crianças.

Educação e saúde
… quando estava na casa da tia, Cristina sempre chegava com sono à escola. Invariavelmente perdia as duas primeiras aulas. No fim do ano, ficou de recuperação em três matérias. Mesmo que tenha trabalhado como doméstica por um período curto se comparado com a média, sua saúde não foi poupada. Por trabalhar muito em pé, seja na residência da irmã do pai ou no restaurante, hoje ela sente fortes dores no joelho. “Cheguei a ir ao médico e ele disse que eu preciso operar.”

Cerca de dois meses depois de ir para a casa do avô, uma vizinha entregou a sua mãe um folheto do projeto “Do trabalho infantil à participação”, do Cendhec, que reúne crianças e adolescentes entre 13 e 16 anos, moradores de comunidades de baixa renda do Recife e com histórico de trabalho infantil, para um processo de formação cujo objetivo é inseri-los nos espaços de formulação de políticas públicas relacionadas aos direitos de meninos e meninas. Cristina preencheu o formulário, fez a inscrição e foi selecionada. Voltou para a casa da mãe e parou de trabalhar…

Paulo Lago, do Cendhec, ressalta um aspecto delicado do problema do trabalho infantil doméstico: muitas vezes, é a própria mãe que põe a filha mais velha para tomar conta dos filhos mais novos enquanto sai para trabalhar – isso quando não chamam afilhadas ou filhas de vizinhos. Por isso, ele defende que é papel do Estado não somente tirar as crianças das situações de trabalho infantil, mas também atuar pelo fortalecimento das famílias de baixa renda, como sua inserção em programas sociais e a construção de creches, para que os pais tenham onde deixar os filhos durante o dia. Creuza, da Fenatrad, destaca que, além das creches, é preciso pensar em escolas de tempo integral, onde crianças e adolescentes possam, além de estudar, realizar outras atividades, como esportes e cursos de línguas.

Creuza Maria de Oliveira, presidenta da Fenatrad. Foto: Valter Campanato/ABr

Creuza Maria de Oliveira, presidenta da Fenatrad. Foto: Valter Campanato/ABr

Outro grande obstáculo à luta contra o trabalho infantil doméstico, além da precariedade de políticas públicas preventivas, é a extrema dificuldade de fiscalização das situações de vulnerabilidade. “Esse tipo de violação acontece no interior do lar, que é inviolável segundo a Constituição. Por isso é importante que órgãos como Conselhos Tutelares, Ministério Público do Trabalho denunciem esses casos e busquem alternativas e maior divulgação do problema”, diz Isa Oliveira, do FNPETI, cuja campanha contra o trabalho infantil de junho deste ano terá como mote justamente o trabalho doméstico infantil.

Direitos
… No projeto do Cendhec desde junho do ano passado, para onde vai todas as quartas-feiras, Cristina aprendeu, na teoria, as consequências do trabalho infantil. Participou de formações, por exemplo, sobre direitos de crianças e adolescentes, atuação dos Conselhos Tutelares e violência doméstica e sexual. Também esteve em oficinas sobre comunicação, para poder exercitar uma visão críticas sobre os meios de informação.

Aos 14 anos, a menina vê sua vida melhorar. A mãe, após um tratamento bem-sucedido, parou de sentir dores na coluna e voltou a trabalhar – faz serviços gerais em uma creche. Cristina não precisa mais ajudá-la. Hoje, a única obrigação é ir à escola.

* nome alterado para preservar a identidade da entrevistada
Imagem de abertura: Reprodução/Campanha FNPETI contra trabalho infantil doméstico

Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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A dura realidade do trabalho infantil doméstico

O combate ao trabalho infantil doméstico no Brasil enfrenta barreiras culturais, desigualdades de gênero e dificuldades de fiscalização

Por Maria Denise Galvani, da Repórter Brasil

Sem perspectivas no sertão da Bahia, aos 15 anos, uma retirante chega a Ilhéus para buscar trabalho em casas de família. Acaba virando cozinheira na casa do árabe Nacib, onde começa propriamente a história de “Gabriela, Cravo e Canela”, romance consagrado de Jorge Amado, encenado várias vezes no cinema e na TV.

A história de Gabriela, muito viva no imaginário popular brasileiro, parte de uma situação tão comum para a sociedade da época que até hoje ainda passa batida para quem se envolve com o livro: o trabalho infantil doméstico.

Num Brasil bem mais moderno e onde o trabalho infantil já era proibido, em 2008, cerca de 320 mil crianças de 10 a 17 anos realizavam trabalhos domésticos, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do IBGE. Em 2001, estudo da Organização Internacional do Trabalho apontou que mais da metade (64%)  das 500 mil crianças trabalhando no serviço doméstico então recebiam menos de um salário mínimo por uma jornada superior a 40 horas semanais e 21% tinham algum problema de saúde decorrente do trabalho.

Barreira cultural
Ainda hoje o trabalho infantil doméstico se confunde com solidariedade e relacionamento familiar em lares brasileiros. Em regiões onde convivem famílias pobres e ricas, é comum a divisão do trabalho na cidade ou na fazenda se estender à figura do “afilhado” ou “filho de criação”, geralmente o filho do empregado ou do parente mais pobre que vai à cidade para “ter mais oportunidades” e cuidar da casa e das crianças da familia.

Meninas trabalham como lavadeiras em Conceição do Araguaia, no Pará. Foto: João Roberto Ripper / Imagens Humanas

“O trabalho infantil doméstico é visto mais como caridade do que como exploração. Isso não mudou”, conta Renata Santos, pedagoga do programa de enfrentamento ao trabalho infantil doméstico (PETID) do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca-Emaús), em Belém. Segundo ela, famílias de classe média da capital ainda recebem mão-de-obra do interior do Estado; no interior, a zona urbana emprega as crianças da zona rural.

Renata lembra das primeiras reuniões de conscientização no início do programa, há 13 anos: “Era horrível. Fazíamos palestras em igrejas e anúncios no rádio para tentar sensibilizar as patroas, e elas não entendiam”, conta.

Ativo na região metropolitana de Belém e em quatro outras cidades do Pará, o Petid hoje entrou em sua terceira fase. “Agora fazemos uma campanha mais incisiva. Antes era uma questão de sensibilização, de explicar o problema, e agora nós dizemos claramente que quem emprega mão-de-obra infantil está sujeito a penalidades”, explica Renata.

O trabalho doméstico é tão fortemente enraizado nas práticas sociais brasileiras que chegou a ser contemplado no Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído em 1990 – o ECA determinava regularização da guarda do adolescente empregado na prestação de serviços domésticos. Esse artigo (248) é considerado tacitamente revogado desde 2008, quando o Brasil aprovou a lista de piores formas de trabalho infantil, proibidas para adolescentes com menos de 18 anos.  Entre elas está o trabalho doméstico.

Ministro Lélio Bentes, presidente doTribunal Superior do Trabalho. Foto: Divulgação/TST

O ministro Lélio Bentes, presidente da mais alta corte trabalhista do Brasil, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), reforça a necessidade das campanhas – incisivas, como diz Renata – de conscientização na área. “Quando se diz que uma criança é levada ao trabalho infantil para ser protegida, para ter oportunidade de estudo – isso é balela, é um discurso construído para justificar a exploração”, afirma. “O que me parece mais eficaz na questão do trabalho infantil doméstico, sem sombra de dúvida, é a conscientização: as pessoas precisam se indignar com a violação dos direitos das crianças e dos adolescentes”.

Características e riscos do trabalho infantil doméstico
Enquanto, em geral, o trabalho infantil atinge mais meninos do que meninas, quando se trata de trabalho doméstico a situação se inverte e fica mais aguda: 94% das crianças e adolescentes trabalhando em casas de família são meninas, segundo a PNAD de 2008.

Com mais de dez anos de experiência no combate ao problema Renata aponta o que considera o maior problema enfrentado pelas meninas que trabalham cuidando da casa ou dos filhos de alguém. “A criança que faz o trabalho infantil doméstico é privada do convívio com sua família e sua comunidade, não é uma situação natural para ela”, explica.

A OIT cita ainda como os riscos mais comuns presentes na vida dessas crianças a submissão a jornadas longas e muito pesadas de traballho, salários baixos ou inexistentes e uma grande vulnerabilidade ao abuso físico, emocional ou sexual.

Renato Mentes, coordenador nacional do Programa para Erradicação do Trabalho Infantil da Organização Internacional do Trabalho (OIT), concorda: “Muitas trabalhadoras domésticas que vêm de uma situação de trabalho infantil têm um perfil mais submisso e introvertido, características desenvolvidas por uma criança ou adolescente que assumeum papel de adulto dentro de casa”, afirma. De acordo com ele, uma menina que presta serviço doméstico dificilmente encontra ou tira proveito de oportunidades educativas e de desenvolvimento pessoal.

Renato Mentes, coordenador nacional do Programa para Erradicação do Trabalho Infantil da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Foto: Adenilson Nunes/Secom – Governo da Bahia

A defasagem escolar de crianças que fazem serviço doméstico também é muito acentuada, o que também compromete as perspectivas de futuro. Estudo de pesquisadores das Universidades Federais da Paraíba e de Pernambuco publicado na revista Psicologia e Sociedade em 2011 mostrou que 80% das crianças que faziam trabalho doméstico já tinham sido reprovadas; metade dessas crianças atribuiram as dificuldades de desempenho a dificuldades de relacionamento ou adaptação, e 26% delas citaram expressamente o trabalho como fator principal.

Hoje, a principal frente de ação do CEDECA-Emaús no Pará é justamente a escola. “Nossa experiência mostrou que na maioria das vezes a escola sabe da situação da criança, mas não faz a denúncia”, afirma Renata.

Por isso, a estratégia da organização mudou: hoje, oito grupos de jovens, muitos deles ex-trabalhadores domésticos, fazem ações diretas de prevenção em escolas cujos alunos enfrentam o problema. Eles dão palestras sobre o tema dos direitos da criança e do adolescente em escolas, abordam a questão do trabaho doméstico e se aproximam da realidade das crianças exploradas.

Dificuldade de fiscalização
Luiz Henrique Ramos Lopes, coordenador da divisão de trabalho infantil do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), admite que o trabalho infantil doméstico é especialmente difícil de se fiscalizar. “Por causa da inviolabilidade domiciliar, não existe uma ação fiscal contra o trabalho doméstico como há em outras áreas. Não se pode entrar na casa de alguém sem um mandado judicial”, explica.

Menina marisqueira em Maragogipe, na Bahia. Foto: João Roberto Ripper / Imagens Humanas

Muitos fiscais, segundo Lélio Bentes, conseguem fazer a fiscalização em espaços públicos onde a criança trabalhadora doméstica circula, como feiras, parques e mercados. São raras as vezes, no entando, em que criança é encaminhada para a rede de proteção, já que a regulamentação específica para a fiscalização do trabalho doméstico também é mais branda; instrução normativa do MTE prevê que os eventuais flagrantes devem ser tratados com medidas de conscientização, e não propriamente com autuação dos fiscais. Essa instrução normativa, segundo apurou a Repórter Brasil, está sob revisão e deve cair.

Por fim, a própria atividade do trabalhor doméstico adulto é alvo de discriminação por parte da legislação brasileira. O registro de empregados domésticos hoje, por exemplo, não contempla o recolhimento obrigatório do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Também há dificuldades em se aplicar o controle de jornada e fazer valer o direito a pausas e horas extras, por exemplo.  A Convenção 189 da OIT para o Trabalho Doméstico, que exige a equiparação dos direitos desses empregados aos dos demais trabalhadores urbanos, aguarda ratificação do Brasil.



É da nossa conta! Trabalho Infantil e Adolescente. Uma campanha colaborativa da Fundação Telefônica em correalização com OIT e Unicef
Dividida em quatro estratégias – Reconheça, Questione, Descubra e Compartilhe – a campanha É da nossa conta! pretende sensibilizar e potencializar ações junto a diversos públicos, incluindo crianças, adolescentes, jovens e especialistas em trabalho infantil para que se tornem agentes multiplicadores, produzindo e compartilhando informações sobre o tema nas redes sociais. Saiba mais em
http://bit.ly/OlDlKY

 

O que fazer?
Identificou alguma situação de trabalho infantil? Comunique ao Conselho Tutelar de sua cidade, ao Ministério Público ou a um Juiz de Infância. Há a opção também de denunciar pelo telefone ou site do Disque 100 – Disque Denúncia Nacional: www.disque100.gov.br 

Como compartilhar?
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