postado por

Por que parcela significativa da sociedade brasileira ainda defende trabalho infantil e minimiza a gravidade desta forma de exploração?

Por Fernanda Sucupira, da Repórter Brasil

Ainda que a luta pela erradicação do trabalho infantil e a consciência sobre esse problema social venham crescendo nas últimas décadas, quem atua na área costuma se deparar com argumentos de pessoas de diferentes setores da sociedade a favor das atividades laborais de crianças e adolescentes.Uma das principais justificativas é o de que é melhor que meninos e meninas estejam trabalhando do que na rua, sem fazer nada, vulneráveis ao uso de drogas e à criminalidade.

Segundo Isa Maria de Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional para a Prevenção e Eliminação do Trabalho Infantil (FNPeti), essa ideia é uma falácia. “Várias formas de trabalho infantil favorecem que crianças e adolescentes sejam empurrados para o crime organizado, para o tráfico de drogas, para o tráfico de pessoas, para a exploração sexual. Muitas vezes nesse contexto são submetidos a xingamentos, espancamentos, violência, abuso sexual”, exemplifica.

Além disso, essa ideia não se confirma quando são feitas pesquisas com adultos que estão encarcerados ou com adolescentes em medidas socioeducativas. “A imensa maioria dos presidiários trabalhou na infância, e esses adolescentes quando cometeram o delito já haviam trabalhado ou estavam trabalhando. De que forma o trabalho infantil preveniu a marginalidade deles?”, pergunta Marinalva Cardoso Dantas, auditora fiscal do trabalho em Natal (RN). Para ela, é justamente trabalhando que eles acabam caindo na criminalidade, é o trabalho que os coloca na rua.

Outra concepção bastante presente e complementar à anterior é a de que o trabalho dignifica o ser humano, molda o caráter, forma valores, portanto, é benéfico a crianças e adolescentes. É um valor cultural que, pelo menos no que se refere à população infanto-juvenil, também não condiz com a realidade. “Nosso contra-argumento é de que para crianças e adolescentes, em idade de plena escolarização, cumprir a jornada escolar, ser pontual, realizar atividades, fazer as tarefas e estudar, tudo isso são condições que favorecem a formação do caráter”, defende a secretária executiva do FNPeti.

Fotos: João Roberto Ripper / Imagens Humanas

Ela afirma que há pouca valorização da educação integral, das práticas esportivas, culturais, de lazer, do exercício da criatividade e do lúdico, atividades que contribuem muito mais para o desenvolvimento físico e emocional da criança do que o trabalho infantil, que impõe uma rotina de adulto e subtrai a condição de infância. No entanto, segundo Oliveira, é educativo e recomendável que crianças e adolescentes participem com suas famílias de uma divisão solidária de tarefas, o que os prepara para a vida, fortalece o sentimento de solidariedade, de responsabilidade para com o ambiente em que se vive.

Muitos utilizam sua própria história, ou a história de pessoas proeminentes, para exemplificar os efeitos positivos ou, no mínimo, nulos do trabalho infantil em uma trajetória de sucesso. É comum inclusive entre os políticos utilizar esse recurso, apontando pessoas como o ex-presidente Lula para mostrar que essas atividades não acarretam prejuízos para o futuro das crianças. “Essa é uma irresponsabilidade grande dos brasileiros porque essas pessoas querem nos convencer de que são bem sucedidas porque trabalharam na infância, caso contrário seriam fracassadas”, afirma a auditora fiscal de Natal. Dantas conta que ela própria já foi confrontada inúmeras vezes, inclusive em entrevistas jornalísticas, por pessoas que diziam que trabalhavam desde pequenas e que não havia nenhum problema nisso.

Se em alguns casos o trabalho infantil não surte efeitos nocivos, essa não é a regra para a maioria dos que são obrigados a trabalhar precocemente.  “Crianças que trabalham ficam com mil problemas psicológicos, autoestima baixa e não vão para a escola. Depois têm que aceitar tudo o que ninguém quer, o que não presta, trabalhos perigosos, desagradáveis, porque não se prepararam”,  diz Dantas. Para a secretária executiva do FNPeti, não se pode deixar que algumas exceções sejam vistas como regra. “Quem mais da família do Lula que passou pelo trabalho infantil teve a projeção que ele tem?”, questiona.  “Foi a militância sindical e não o trabalho infantil o que formou o Lula. Foi apesar do trabalho infantil e não por causa dele”, avalia.

Preconceito de classe

Para Rafael Dias Marques, da Coordenação Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do Trabalho (MPT), na visão de quem defende essa prática, o trabalho é um mal menor. “Essas pessoas não têm a concepção de que é altamente nocivo, de que pode trazer os mesmos prejuízos que as drogas e o crime”, afirma. Ele acredita que elas não sabem das dificuldades de aprendizado causadas pelo trabalho infantil; do grande risco que crianças e adolescentes têm de se acidentar nessas atividades. Não levam em conta que são retirados do convívio familiar, afastados do lazer, da brincadeira, do ócio. “A sociedade entende o trabalho como solução para a criança pobre, no lugar da educação, de garantir a proteção integral por parte do Estado”, completa o procurador do trabalho.

Clique no mapa para ver infográfico interativo com a distribuição do trabalho infantil no Brasil

Isso revela que nesse discurso de defesa do trabalho infantil está presente também um preconceito de classe, uma discriminação em relação à população mais pobre. Num momento em que filhos e filhas das classes altas estão adiando cada vez mais a entrada no mercado de trabalho, preferindo antes concluir cursos de graduação, pós-graduação, e temporadas de estudos no exterior, para conseguir postos mais bem pagos, muitos defendem que os filhos e filhas das classes baixas ingressem nele cada vez mais cedo.

“Quando se trata do filho alheio, é uma verdade, mas só para o pobre, para grupos marginalizados. Para meu filho, educação integral: de manhã na sala de aula e à tarde aulas de inglês, balé, judô, natação. É uma demagogia daqueles que sentem na criança do outro uma ameaça à sua própria estabilidade. O outro, por ser pobre, a priori é um delinquente em potencial, só tem duas alternativas na vida, trabalhar ou ser delinquente. Mas a criança tem direito a outra via”, defende Renato Mendes, coordenador do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil no Brasil da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Reações contra o enfrentamento ao trabalho infantil

Não são raros os casos de ameaças aos auditores fiscais do trabalho em todo o Brasil durante as fiscalizações de casos de trabalho infantil, pelos familiares, pelos empregadores e até pelas próprias crianças e adolescentes, que entendem que estão sendo prejudicados pela atuação do Estado para eliminar essa prática. “Sempre somos ameaçados pelas mães quando fiscalizamos, elas são agressivas. E pelos empregadores também, que têm medo de perder a mão de obra barata, não têm nenhum interesse na criança”, relata Dantas.

Como parte dessa reação, são frequentes as propostas de emenda constitucional (PEC) que vão na contramão da erradicação do trabalho infantil, propondo a redução da idade mínima para entrar no mercado de trabalho. Uma PEC com esse conteúdo (268/2008), apresentada pelo deputado federal Celso Russomanno (PRB-SP), foi barrada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ), em 2009, por ser considerada inconstitucional. Afirmava que “o impedimento ao trabalho faz com que os jovens busquem a saída de seus problemas na droga, no furto, no trabalho informal, no subemprego, na mendicância e na prostituição”.

Atualmente, duas PECs que propõem a redução da idade mínima para 14 anos se encontram na CCJ, uma do deputado federal Dilceu Sperafico (PP-PR) e outra do deputado federal Onofre Santo Agostini  (DEM-SC), respectivamente PEC 18 e PEC 35, ambas de 2011. Eles defendem que o trabalho infantil não prejudica os estudos e, havendo acompanhamento, “só trará benefícios, tendo em vista que além de gerar rendimentos para a família será um fator positivo para a sua formação moral e educacional”.

O procurador do trabalho Marques acredita que elas também serão consideradas inconstitucionais por dois motivos. Primeiro porque tratados internacionais adotados pelo Brasil proíbem a redução da idade mínima, como a Convenção 138 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2001. Em segundo lugar, os direitos fundamentais são cláusulas pétreas da Constituição Brasileira, por isso não podem ser alterados por PECs, somente através da formação de uma nova assembleia constituinte.


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente

 

12 thoughts on “A naturalização do trabalho infantil

  1. Este documentário é de grande relevância.Em minha cidade, Gravatá-PE,há índice de trabalho infantil elevado, por termos uma política Pública voltada para as crianças e adolescentes frágeis.
    Estamos fazendo campanha de sensibilização nas feiras, e comércio, porém a população não compreende, e sai no contra ataque.
    Estou como conselheira tutelar fazendo o possível para esclarecer , entretanto ainda, é muito difícil.

  2. Pingback

  3. O trabalho infantil não prejudica a crianca e o adolescente desde que digno e um acompanhamento intensivo de educador, médico, piscicologo, assistente social e pessoas com plena capacidade laboral.

  4. Pingback

  5. Pingback

  6. São poucas pessoas querem trabalhar com essa questão social, para muitos muito complicadas, faz vistas grossas, os políticos então não querem nem pensar em aprovar projetos neste assunto, muito menos fazer projetos, pois este assunto não ganha voto
    , e na verdade o que eles querem e ter massa de manobras, garantir os votos dos leigos.

  7. Pingback

  8. Pingback

  9. Pingback

  10. Não li o texto todo,só naquilo que se refere a opinião de muito a respeito do tempo livre das crianças, medo que muitos tem de os mesmo envolvere-se em questões inlicitas. Minha opinião é a seguinte: se tivéssemos escolas em tempo integral muitos pais não teriam a desculpa d falta do que fazer destas crianças, se estas crianças estivessem em uma instituição que lhes garantissem segurança, lazer e aprendizado,tenho certeza que os pais não as colocariam em situações “sacrificantes”.Fazem isso pensando está garantindo um futuro para estes menores…infelizmente a educação básica brasileiras é uma tragedia partindo do pressuposto da nossa realidade de ex. colonia e etnia Afro.

  11. Sou a favor de trabalho infantil em modo de aprendiz supervisionado a maiores de 12 anos e contra o “período integral”
    Hoje se VC fizer essa pergunta ” o que vc vai ser quando maior?” A um adolescente de 14 a 17 anos, ele diz: “não sei” porque? Se preocupam demais com estudo deixando ele 10 horas numa sala de aula + 2 dever de casa se esquecem das noções de adaptação ao mercado de trabalho, vamos ter um cara de 18 anos com “conhecimento” sem experiência

    Se mantermos o nivel da grade escolar e colocasse um estágio supervisionado entre pais patrões e professores de um modo que não vá prejudicar a nada, e permitir que ele estagie em vários setores, sempre dando a oportunidade da escolha da área a seguir, pois essa é a intenção, ajudar a escolher a area entre um monte que se tem numa firma. Ele.

    1) vai ter o convívio com uma cadeia de produção de uma empresa, vai observar as demais pessoas trabalhando e falar “vou batalhar para caramba para chegar onde ele chegou”.
    2) se trabalhar bem, aos 18 (ou quando completar o médio) já vai ser promovido a efetivado da área.
    3) Ao invés do “não sei vou arriscar qualquer coisa” aos 18 para depois entrar na faculdade trabalhar na área, ele vai falar “Oxê, já estou onde queria estar, agora e lutar para crescer nela.

    Isso valeria também para analfabetos, todos que não tem ensino médio completo, ou que faça algum curso presencial, independente da area se é de função dele ou não, trabalhariam como estagiários dependendo das notas e presenças escolares para manter o emprego, isso é fora a dedicação nele.

    Mas quem não acabou escolaridade deveria ser estagiários independente da idade.

    Detalhe, até 10 anos dá para arriscar, menos que isso prejudica.

    Viu, acabou com o problema de trabalho infantil e analfabetismo ao mesmo tempo, e para melhorar, vão estudar melhor, pois dobra a responsabilidade e incentivo aos estudos para manter o emprego. Pensarão no emprego antes do 1o cano, imagina evadi-la.

    Detalhe, tudo isso com carteira assinada, qualquer trabalhador brasileiro independente do que seja deverá ter a carteira assinada.