Lugar de gente feliz? Pão de Açúcar e a exploração do trabalho adolescente

Justiça do Trabalho determina que unidade da rede de supermercados em Ribeirão Preto (SP) deixe de praticar irregularidades trabalhistas, entre as quais a submissão de jovens aprendizes a desvios de função

Por Igor Ojeda

O supermercado Pão de Açúcar é “lugar de gente feliz”, diz o comercial na TV. Clientes felizes e ecologicamente sustentáveis encontram, em qualquer loja da rede, funcionários igualmente felizes e ecologicamente sustentáveis sempre dispostos a atendê-los.

De acordo com a juíza Francieli Pissoli, da 5ª Vara do Trabalho de Ribeirão Preto (SP), no entanto, a realidade é um pouco diferente. Em decisão de novembro deste ano, ela concedeu liminar favorável ao Ministério Público do Trabalho (MPT) determinando ao Grupo Pão de Açúcar (GPA) que deixe de praticar uma série de irregularidades trabalhistas, entre estas, a submissão de jovens aprendizes a desvios de função e de seus funcionários em geral a jornadas excessivas.

As violações foram flagradas por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) na loja do grupo localizada na avenida João Fiúsa, na Zona Sul de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Segundo a fiscalização, a gerência da unidade obrigava os adolescentes contratados pelo programa de aprendizagem a trabalhar como caixas e empacotadores, em períodos noturnos e em regime de compensação de jornada, condições não permitidas pela legislação brasileira. Além disso, a empresa não cumpria o número mínimo de 5% de aprendizes em relação ao total do quadro de empregados.

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Adolescentes eram obrigados a trabalhar como caixas e empacotadores, em períodos noturnos e em regime de compensação de jornada. Foto: Divulgação/Pão de Açúcar

De acordo com a fiscalização do MTE, além de desrespeitar as violações dos direitos dos adolescentes aprendizes, o Pão de Açúcar Fiúsa, como a unidade era conhecida, não cumpria com algumas obrigações trabalhistas dos funcionários adultos. Extensão de jornadas acima do permitido, ausência de intervalos regulares e descanso semanal, e falta de registro de horário de entrada e saída dos empregados foram algumas das práticas flagradas.

Em nota enviada à reportagem, o Grupo Pão de Açúcar afirma que cumpre a legislação trabalhista e “repudia qualquer situação de violação aos seus preceitos”. Sobre os adolescentes, a rede garante que seu programa direcionado a aprendizes possui diretrizes “orientadas pelas leis vigentes”, o objetivo de “possibilitar a entrada desses jovens no mercado de trabalho” e a premissa do “desenvolvimento e aperfeiçoamento profissional dos participantes da iniciativa”.

A Ação Civil Pública (ACP) havia sido ajuizada pelo procurador Henrique Lima Correia, da Procuradoria do Trabalho do Município de Ribeirão Preto, após o Pão de Açúcar ter se negado a firmar um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) proposto por Correia. “As denúncias de irregularidades chegaram a nós através do site da Procuradoria. Chamei o Pão de Açúcar para se manifestar sobre elas. Se fossem verdadeiras, que firmássemos um acordo extrajudicial, um TAC. A empresa negou que houvesse irregularidades e não aceitou firmar o TAC. Então requisitei uma fiscalização junto aos fiscais do trabalho. Esta foi feita e foram constatadas várias irregularidades”, explica o procurador à Repórter Brasil.

Uma vez flagradas as violações, e como a rede de supermercados já havia se recusado a firmar qualquer acordo extrajudicial, Correia decidiu entrar com a ação solicitando, por meio de antecipação de tutela, que a empresa imediatamente cessasse de realizar tais práticas irregulares. “Em razão das graves irregularidades, além de pedir para que fosse regularizado tudo isso, solicitei à Justiça a condenação, por danos morais coletivos, ao pagamento de R$ 400 mil”, esclarece o procurador. Caso o Judiciário condene o Pão de Açúcar, esse valor será revertido ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

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A inspeção dos auditores do MTE rendeu à empresa 11 autuações. Foto: Divulgação/Pão de Açúcar

A inspeção à unidade do Pão de Açúcar na Zona Sul de Ribeirão Preto, realizada pela Gerência Regional do Trabalho e Emprego (GRTE) do município, teve como resultado 11 autos de infração. Foram encontrados jovens aprendizes em jornadas abusivas e trabalhando em horários noturnos – depois das 22 horas. Além disso, os auditores verificaram que adolescentes estavam incluídos em banco de horas, que controlava a realização de horas-extras e a concessão de folga compensatória. “Registre-se que a situação ora autuada contraria o disposto no artigo 432, caput, da CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], que assim dispõe: ‘A duração do trabalho do aprendiz não excederá de seis horas diárias, sendo vedadas a prorrogação e a compensação de jornada’”, argumenta a ação ajuizada pelo procurador Henrique Lima Correia.

Trabalho infanto-juvenil
A psicóloga Fabrícia Rodrigues Amorim Aride, estudiosa da questão do trabalho adolescente, lamenta que o caso do Pão de Açúcar não seja isolado. Segundo ela, há no Brasil uma cultura de valorização do labor de crianças e adolescentes como um meio de afastá-los da ociosidade e da possível delinquência, e, quando vinculado às tradições familiares de organização econômica, fazê-los aprender um ofício e auxiliar na mão de obra familiar. “Em contrapartida, pode ocorrer a exploração da mão de obra infanto-juvenil, legitimada pelo governo, que muitas vezes é a única forma de sustento formal da família”, pondera.

De acordo com a psicóloga, apesar de trazer um retorno imediato, o trabalho nessa idade pode ter consequências de longo prazo. “Por exemplo, abandono escolar e diminuição da interação social devido ao cansaço físico, afastamento de amigos que passam a ver esse jovem de uma forma diferente (e ele também pode passar a se ver dessa maneira) e, entre outras questões, inserção precoce nas angústias características dos trabalhadores.” Além disso, segundo ela, a entrada dos jovens no mercado de trabalho geralmente não traz a possibilidade de ascensão social, perpetuando, desse modo, a pobreza e a desigualdade social. “Infelizmente, pode-se dizer que os jovens de baixa renda sofrem mais impactos negativos do que os jovens de classes mais privilegiadas, visto que aos segundos são dadas possibilidades de aprendizagens bem diferenciadas, como por exemplo, cursos, intercâmbios, viagens, enquanto aos primeiros, as atividades profissionalizantes que funcionam sob a égide ‘mente vazia é oficina do Diabo’”, analisa Fabrícia.

Aprendizagem
De acordo com a legislação brasileira, não é permitido empregar jovens de idade inferior a 18 anos em trabalhos noturnos, perigosos ou insalubres. Adolescentes de 16 anos ou menos não podem ser contratados para nenhum trabalho, salvo na condição de aprendiz, permitida a partir dos 14 anos. Segundo o MTE, “aprendiz é o empregado com um contrato de trabalho especial e com direitos trabalhistas e previdenciários garantidos. Parte do seu tempo de trabalho é dedicada a um curso de aprendizagem profissional e outra é dedicada a aprender e praticar no local de trabalho aquilo que foi ensinado nesse curso”.

A aprendizagem foi estabelecida oficialmente no Brasil pela Lei 10.097/2000 e regulamentada pelo Decreto 5.598/2005. Lei e decreto determinam que qualquer empresa de médio e grande porte é obrigada a contratar adolescentes e jovens entre 14 e 24 anos, cujo contrato terá, no máximo, dois anos de duração. Ao mesmo tempo, estes devem ser matriculados em cursos de aprendizagem ministrados por instituições qualificadoras reconhecidas, que serão as responsáveis pela certificação – por exemplo, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), escolas técnicas e entidades sem fins lucrativos que tenha como objetivo a educação profissional. A carga horária máxima é de seis horas diárias, podendo chegar a oito caso estejam incluídos os períodos dedicados ao aprendizado teórico. “A aprendizagem deve ter caráter mais pedagógico do que de trabalho. As funções que os adolescentes estavam ocupando na loja do Pão de Açúcar de Ribeirão Preto não eram condizentes com a aprendizagem”, explica o procurador do trabalho responsável pela ação.

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Segundo o próprio grupo, rede possui quase 2 mil pontos de venda e emprega mais de 155 mil funcionários. Foto: Viakenny/Flickr

Para Fabrícia, a regulamentação da aprendizagem pelo governo federal foi uma iniciativa importante, que propiciou a legalização e o reconhecimento dos direitos dos adolescentes, uma vez que, segundo ela, o trabalho é uma atividade estruturante da vida e tem importância fundamental na construção da identidade do jovem. “Entretanto, não há uma lei que defina o que de fato seja o trabalho educativo e imponha limites a ele. Observamos, por exemplo, jovens universitários trabalhando em organizações sem ligação nenhuma com sua futura formação profissional, e acobertando um problema ainda mais amplo: a ausência de contratações efetivas pelas instituições. Portanto, essa é uma questão que não se restringe apenas aos jovens do programa”, alerta.

Pão de Açúcar
De acordo com sua própria página na internet, o Grupo Pão de Açúcar – empresa do Grupo Casino, de origem francesa – é um dos líderes mundiais no varejo de alimentos. É a maior companhia da América Latina no setor, com quase 2 mil pontos de venda e mais de 155 mil funcionários. Controla ainda estabelecimentos como Extra, Casas Bahia e Ponto Frio. Em 2012, registrou lucro recorde: R$ 1,1 bilhão, crescimento de 60,7% em relação ao ano anterior. Em 2013, os primeiros nove meses já renderam R$ 709 milhões, alta de 14,8% em comparação ao mesmo período do ano passado.

No tópico “Missão, visão e pilares” de seu site, o grupo chama seus trabalhadores de “nossa gente”, que são, de acordo com o site, “profissionais com excelência técnica, bem preparados e motivados para assumir desafios, riscos e atitudes inovadoras. Pessoas que gostem de servir, que valorizem o respeito em suas relações internas com o cliente, fornecedores e parceiros”. Entre os princípios da empresa, figuram, entre outros, a garantia de que “nossa gente é gente que faz a diferença” e o compromisso “com o crescimento de uma sociedade justa, humana e saudável”. Sobre o Instituto Pão de Açúcar, voltado à responsabilidade social, o GPA diz que “acredita e sempre trabalhou com foco no potencial humano, acreditando que, quando estimulada, sua força latente se revela e dá novos sentidos a vida”.

Já a unidade Fiúsa, de Ribeirão Preto, foi inaugurada em novembro de 2009. De acordo com informações da imprensa da época, foi a segunda do grupo na cidade e o primeiro “supermercado Verde” local: foram investidos R$ 11 milhões para que todas as etapas da implementação da loja fossem concebidas sob critérios de responsabilidade socioambiental, segundo a empresa.

Nota do Pão de Açúcar:

“O GPA esclarece que cumpre a legislação trabalhista e que repudia qualquer situação de violação aos seus preceitos. A companhia mantém um programa de desenvolvimento e capacitação de Jovens Aprendizes, cujas diretrizes são orientadas pelas leis vigentes e tem como objetivo possibilitar a entrada desses jovens no mercado de trabalho e como premissa o desenvolvimento e aperfeiçoamento profissional dos participantes da iniciativa. Sobre a liminar citada, a companhia esclarece que não foi notificada oficialmente e que apresentará sua posição em juízo assim que tal fato ocorrer.”

Crianças trabalham como ambulantes nos arredores da Arena Fonte Nova, em Salvador

Enquanto o luxo predomina no lado de dentro de um dos estádios da Copa do Mundo, no lado de fora o trabalho infantil é comum na venda de cerveja, nas barraquinhas de churrasco e na coleta de latas de alumínio, entre outras atividades

Por André Uzêda, para a Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Salvador (BA) – Em uma sintomática contradição biológica, a Arena Fonte Nova, estádio baiano erguido para a Copa do Mundo de 2014, tem exposto suas vísceras do lado externo da arquitetura que emoldura sua construção. Divididas entre brasas incandescentes, bandejas mal equilibradas e servindo latinhas de cerveja, um batalhão de crianças executa atividades profissionais sob olhares pouco desconfiados dos que ali transitam.

É um domingo, 27 de outubro, e os torcedores se aglomeram nos arredores do estádio para acompanhar o embate entre Bahia x Atlético-PR, em Salvador, pela 31ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2013.

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Demolida e reconstruída para a Copa do Mundo, Fonte Nova apresenta interior luxuoso. Foto: Secom-BA

As crianças e jovens que compõem esse cenário da exploração aparentam idade entre 8 e 17 anos e se agrupelham entre as mais diversas atividades informais ofertadas no espaço. Tal qual uma ciranda desencontrada, algumas vendem cervejas acompanhadas dos pais, enquanto outras recolhem latas de alumínio abandonadas no chão. Há ainda as que, próximas ao braseiro, onde são assadas carnes para serem comercializadas, ignoram os perigos da inalação da fumaça ou riscos de queimaduras com a imprudência própria da idade. A brutalidade envolve a atmosfera do lugar, sob olhares embrutecidos de quem enxerga aquilo como cenário habitué.

O barulho ambiente, exagerado a ponto de extrapolar as cercanias do lugar, parece sufocar a presença da pequena Vanessa**, de apenas 9 anos. A garota, apenas mais uma entre tantas outras crianças submetidas ao trabalho infantil naquele espaço, mantém o olhar em um ponto fixo, evasivo.

A menina carrega um curativo acima do olho direito, fruto de uma traquinagem infantil, enquanto apostava corrida durante o recreio escolar. Quando perguntada pela reportagem por que, mesmo tão nova, precisa ir trabalhar, sorri timidamente: “Fala com minha mãe, moço”.

“Melhor do que ficar na rua”
Há 20 anos, a senhora de 52 anos estabeleceu seu ponto de venda de cerveja em jogos do Bahia. A bebida é armazenada em um isopor largo, equilibrado em um carrinho de mão. Ela é mãe da pequena desconfiada, embora também acumule a função de chefia nessa relação familiar. “Tem pouco tempo que comecei a levá-la para me acompanhar. Vanessa fica mais aqui para cuidar das coisas enquanto eu vou ao banheiro ou preciso trocar um dinheiro. Não posso deixar o lugar vazio”, pontua a matriarca.

Em média, estima a ambulante, em um dia de jogo é possível arrecadar até R$ 400 com a venda de bebidas alcoólicas (proibidas no interior do estádio por resolução da CBF). Com o marido encostado pelo INSS, após cirurgia delicada, ela virou responsável por sustentar a casa ao mesmo tempo que cuida da sua prole. “Essa é outra razão pela qual levo Vanessa comigo. É melhor do que ela ficar na rua, sem ter o que fazer, desocupada…”, argumenta.

Vanessa bebe água enquanto ajuda sua mãe a vender cerveja do lado de fora do estádio. Foto: André Uzêda

Vanessa bebe água enquanto ajuda sua mãe a vender cerveja do lado de fora do estádio. Foto: André Uzêda

Explicação comum
De acordo com a socióloga baiana Inaiá Carvalho, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), dois elementos na fala dessa vendedora resumem a condição do trabalho infantil em território brasileiro. “Esse problema [trabalho infantil] ainda é visto pelos pais como um fator educacional. Na falta de uma escola em tempo integral, eles acham que, muitas vezes, é melhor ter o filho por perto, mantendo-o longe da rua, do crime e de tantos outros problemas”, diz a pesquisadora, que emenda: “A outra condição é estritamente social. O trabalho na infância está ligado à criança pobre, estritamente. Não se fala dessa questão entre jovens e crianças de classe média, por exemplo”, afirma. Especialistas na questão costumam defender que em vez de se criminalizar os pais, é necessário realizar um trabalho de conscientização e de fornecimento de garantias sociais.

A socióloga, porém, diz enxergar avanços consistentes nos últimos anos em relação ao combate ao trabalho infantil no Brasil. “Desde a década de 1990, os governos vêm sistematicamente trabalhando contra essa chaga social. A própria sociedade despertou de uma postura de passiva naturalidade para uma de horror escandalizado diante do trabalho infantil, sobretudo aquele mais pesado, na extração do sisal, carvoarias e plantação de cana-de-açúcar. Desde o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, sancionada em 1990), os números de casos estão diminuindo”, afirma.

Sem escola em tempo integral
Apesar da redução de 13,44% na última década, entre jovens que trabalham dos 10 aos 17 anos, segundos dados do último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística), os números apontam estagnação da exploração infantil como mão de obra na zona rural e no setor informal da economia, como é o caso das crianças que trabalham ao redor da Fonte Nova. “São duas vertentes que tiveram baixas importantes, mas estagnaram. Chegamos a um ponto em que a única forma de resolver essa questão é com a redução drástica da pobreza e com escolas com acompanhamento integral para os jovens”, afirma a professora Inaiá Carvalho.

A ausência de uma instituição de ensino que prolongue suas atividades em mais de um período é a principal causa, por exemplo, para Gilvan**, de 14 anos, acompanhar uma senhora de 60 anos na sua rotina de trabalho. O garoto, que recolhe dinheiro enquanto ela assa espetos de carne, não possui qualquer relação de parentesco com a vendedora.

A reportagem encontrou o adolescente trabalhando nos arredores da Arena Fonte Nova em uma quinta-feira à noite, dia 24 de outubro, momentos antes da partida Bahia x Nacional de Medellín (Colômbia), pelas oitavas de final da Copa Sul-Americana. “Ele é meu vizinho, lá do subúrbio ferroviário. A mãe dele sai para trabalhar e passa o dia todo na rua, só volta de noite. Ela que me pede para levá-lo para o trabalho, porque ele pode juntar um dinheiro e também fica mais seguro”, diz a churrasqueira.

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No total, nova arena custou R$ 688,7 milhões, a serem pagos em 15 anos. “Nunca entrei lá não”, revela Vanessa. Foto: Carol Garcia/Secom-BA

Copa do Mundo
O olhar de Vanessa, perdido no horizonte, em algum momento talvez se depare com a suntuosidade da Arena Fonte Nova. A praça esportiva seria levantada ao custo inicial de R$ 591,7 milhões, celebrados por um contrato de PPP (Parceria Público Privada) entre governo do estado e as construtoras OAS e Odebrecht. Entretanto, um aditivo contratual de R$ 97,7 milhões elevou o valor final do empreendimento para R$ 688,7 milhões, no total. A serem pagos nos próximos 15 anos.

Tal grandeza numérica, traduzida em conforto, rótulos de sustentabilidade e embalagem de segurança para o mundial brasileiro, ainda que fisicamente próximos parecem léguas de distância da realidade da pequena Ana Carolina. “Nunca entrei lá não”, confidencia a garota, em referência ao luxuosíssimo estádio.

Enquanto embala sonhos do lado de dentro, fora o estádio expõe suas vísceras.

* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

** Os nomes são fictícios para preservar a identidade das fontes.

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Ex-presidente Lula diz que falta vergonha para acabar com trabalho infantil

Conferência Global realizada em Brasília aponta necessidade de acelerar esforços para erradicar o trabalho infantil até 2016 

Por Antonio Biondi, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Brasília (DF) – “Falta vergonha e vontade política para acabar com o trabalho infantil. Recursos existem, certamente.” O ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, resumiu em poucas e agudas palavras um sentimento que permeava toda a programação da III Conferência Global Sobre Trabalho Infantil, realizada durante esta semana em Brasília (8 a 10). Em seu documento final, a “Declaração de Brasília”, a Conferência afirmou “a necessidade de acelerar os esforços em todos os níveis para erradicar o trabalho infantil, em particular suas piores formas até 2016”.

O evento destacou a centralidade do Brasil e da América Latina na agenda de combate ao trabalho infantil, definindo que a IV Conferência Global será realizada na Argentina, em 2017. O encontro também afirmou a relevância da cooperação entre países para a erradicação do problema, além do envolvimento e da articulação entre os vários atores no plano nacional e internacional.

Em sua participação, na manhã do último dia 10 – que se afirmou como um dos pontos mais fortes e emblemáticos da Conferência –, o ex-presidente Lula destacou que, desde 2008, mais de 10 trilhões de dólares foram gastos no socorro e proteção aos bancos, indústrias, seguradoras e outros segmentos ligados ao setor privado. E lembrou que a Guerra no Iraque já consumiu entre 1,7 trilhão e 3 trilhões de dólares.

Lula resgatou memórias de suas viagens pelo mundo e pelo Brasil, destacando a degradação causada pela fome e pela pobreza. Contou, por exemplo, de uma ocasião em que se deparou com crianças mastigando bolachas de argila no Haiti, por não terem recursos para comprar comida. E disse ter visto o mesmo desespero em pessoas na África, na Ásia e na América Latina. No Brasil, registrou a situação em que encontrou crianças mastigando a palma forrageira para enganar a fome e a sede no Nordeste. E contou que ele só foi comer pão pela primeira vez em sua vida aos 7 anos.

Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa da 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa da 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Lula destacou ter perdido o dedo de sua mão esquerda trabalhando das 22hs às 6hs como operário, aos 17 anos, quando era proibido trabalhar nesse horário. Falando especificamente das crianças e adolescentes que hoje trabalham em atividades que oferecem perigos adicionais a elas, Lula lembrou que “quando a pessoa precisa levar alguma comida para casa, alguma renda, ela faz aquilo mesmo sabendo que é errado ou dos riscos envolvidos”.

O ex-presidente registrou concordar que existam vários fatores que contribuem para a existência do trabalho infantil, mas que certamente a miséria e a fome são determinantes. “Os mapas que registram esses problemas coincidem rigorosamente”, concluiu, passando em seguida a elencar uma série de conquistas obtidas pelo Brasil nessas áreas nos últimos anos – bem como agendas a serem priorizadas pelo país e por outras nações no combate ao trabalho infantil nos próximos anos.

Brasil central
Durante a coletiva de imprensa realizada ao final do evento, perguntou-se ao presidente da OIT, Guy Ryder, se o fato de a diminuição do trabalho infantil ter atingido 36% da meta planejada para o período entre 2010 e o final de 2016 não seria uma indicação de que a OIT e a comunidade internacional deveriam rever as metas e estipular algo mais realista.

O presidente da OIT discordou, defendendo que o roteiro estipulado em Haia em 2010, na conferência anterior, deveria ser mantido, com a intensificação dos esforços para chegar à Argentina em 2017 com o objetivo cumprido – ou o mais próximo possível a isso. Para tanto, será necessário se retirar do trabalho infantil as mais de 168 milhões de crianças e adolescentes ainda envolvidas no problema em 2012 – 85 milhões das quais nas piores formas de trabalho. Em 2000, o número global era de 246 milhões de crianças e adolescentes.

Para Ryder, “o intercâmbio de experiências será essencial nesse próximo período, e o Brasil possui um papel central nisso. O Brasil está implementando políticas que estão, sim, dando certo”, afirmou, pedindo licença à ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, para fazer tal avaliação sobre as medidas aplicadas pelo governo brasileiro.

Na própria coletiva, perguntou-se à ministra, cuja pasta incumbiu-se da organização da Conferência, quantas crianças e adolescentes atualmente trabalham no Brasil, e quais as metas do país para os próximos anos. Campello destacou que hoje há 2 milhões de jovens acima de 16 anos trabalhando no Brasil, além de 1,5 milhão com menos de 16 anos e que trabalham.

A ministra afirmou que o governo Dilma não adota atualmente uma diferenciação entre o trabalho infantil no seu todo e em relação às piores formas de trabalho pelo fato de ter conseguido bons resultados atacando o problema na sua totalidade. Ao passo que a diminuição mundial ficou em cerca de 36% entre 2000 e 2012, no Brasil a diminuição atingiu 67%. “Pretendemos então seguir trabalhando na mesma linha, e com metas bem ambiciosas nesse sentido.”

Ministros do Trabalho, Manoel Dias; do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello; das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo; e o diretor-geral da OIT, Guy Ryder. Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Ministros do Trabalho, Manoel Dias; do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello; das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo; e o diretor-geral da OIT, Guy Ryder. Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Campello afirmou que o governo pretende enfrentar um primeiro desafio emergencial, relativo ao trabalho de crianças em lixões, que deve ser atacado ainda em 2014, no contexto da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Além disso, a análise do governo federal é que o trabalho infantil não está mais concentrado em alguns grandes setores, devido à queda já verificada nos principais segmentos que se utilizavam da mão de obra infantil. A ministra afirmou que agora será necessário enfrentar um novo núcleo duro do trabalho infantil, dentro das casas, das propriedades rurais, que diz respeito ao trabalho doméstico e familiar, por exemplo. Para ela, essas novas ações precisarão de outras iniciativas, ao lado da fiscalização, para que logrem sucesso. “Será necessário priorizar a educação, a orientação, o convencimento, buscar transformações culturais”, defendeu.

América Latina em foco
Em diálogo com o intercâmbio defendido pelo presidente da OIT e pelas novas agendas apontadas pela ministra brasileira, a política de enfrentamento ao trabalho infantil doméstico possui exemplos interessantes a serem conhecidos. No Uruguai, por exemplo, o governo do presidente José ‘Pepe’ Mujica já aplica hoje uma metodologia para enfrentar a questão.

Com mais de 1.300 pessoas presentes, vindas de 154 países, com representantes de 135 governos – um marco, especialmente por se tratar de um evento não organizado diretamente pela ONU –, a III Conferência Global Sobre Trabalho Infantil registrou um razoável protagonismo dos países da América Latina.

Menino carrega carrinho de mão em feira livre no interior do Rio Grande do Norte. Foto: Marinalva Dantas

Menino carrega carrinho de mão em feira livre no interior do Rio Grande do Norte. Foto: Marinalva Dantas/SRTE-RN

Além de a Argentina ter obtido sucesso em sua proposta pela realização no país da Conferência Global sobre a Erradicação Sustentada do Trabalho Infantil em 2017, em diversos momentos do encontro em Brasília iniciativas verificadas na região foram apresentadas e destacadas – e certamente poderão ter aplicabilidade e efeitos semelhantes em países dos outros continentes.

O governo do Equador, por exemplo, realizou uma apresentação bastante ampla de seu programa de combate ao trabalho infantil, no qual saltam à vista: o papel destacado conferido aos municípios (com leis e políticas próprias destinadas ao problema), a atuação do governo central não só como responsável pelas normas e sua fiscalização, mas também como orientador e facilitador, e ainda a presença muito forte das políticas de educação e geração de renda.

Eleonora Slavin, da Argentina, ao participar da sessão semiplenária a respeito do papel do sistema judicial no combate ao trabalho infantil, explicou que houve mudanças importantes nos últimos anos nas leis do país. Eleonora destacou que, primeiramente, foi aprovada uma lei proibindo o trabalho aos menores de 16 anos, e que, em março de 2014, houve uma alteração no Código Penal argentino, que passou a prever a pena de um a quatro anos de prisão para quem se valer do expediente do trabalho infantil.

Para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além das conquistas verificadas no Brasil, “o combate ao trabalho infantil também avançou em muitos outros países, sobretudo na América Latina, onde muitos países adotaram modelos de desenvolvimento com inclusão social”.

Desafio de todos
Em sua participação na Conferência, Lula defendeu que a erradicação do trabalho infantil “é uma responsabilidade de todos nós, não só da presidenta, do ex-presidente, mas de toda a sociedade”. O ex-presidente brasileiro destacou ainda o papel fundamental a ser desempenhado nesse sentido pelo Ministério Público, pelo Ministério do Trabalho e Emprego e Poder Judiciário.

Rafael Marques, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), em sua exposição na sessão a respeito do papel do sistema judicial no combate ao trabalho infantil, apresentou o projeto “Políticas Públicas”, implementado por uma coordenação do MPT, tendo à frente os procuradores Alexandre Ragagnin e Sueli Bessa.

Encerramento da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, realizada em Brasília: 154 países presentes, reunindo mais de 1.300 pessoas. Foto: Divulgação/OIT

Encerramento da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, realizada em Brasília: 154 países presentes, reunindo mais de 1.300 pessoas. Foto: Divulgação/OIT

Marques explicou que o projeto inicialmente identificou os 20 piores municípios em termos de trabalho infantil em cada Estado. Além de trabalhar no sentido de compreender a situação da criança e da família, o projeto vai em busca de entender as causas, com vistas a atacar as consequências e evitar o retorno da criança à situação de risco em que se encontrava.

Para que o projeto alcançasse resultados melhores, o MPT teve como premissa o estabelecimento de parcerias, seja com ministérios do governo federal (Saúde, Trabalho, Desenvolvimento Social), seja com as Câmaras Municipais, famílias, aparato policial e instituições da sociedade.

Nos municípios em que se identifica uma maior omissão do poder público em relação a seus deveres constitucionais, o MPT instaura um inquérito civil, que por sua vez pode gerar ou Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) por parte dos municípios junto ao MPT, ou mesmo ações na Justiça voltadas à inibição do ilícito e a pedidos de indenização voltados às crianças e famílias envolvidas – bem como a toda a coletividade.

De acordo com o procurador, o projeto instaurou investigações em 53 municípios em 2012, levando à assinatura de 30 TACs, e a medidas por parte das prefeituras, empresas e outras instituições locais que beneficiaram cerca de 42 mil crianças entre 10 a 17 anos.

A necessidade de uma ação coordenada envolvendo todas as nações foi destacada também pela presidenta Dilma Rousseff, na abertura da Conferência. Dilma destacou a importância da articulação entre os países, e também entre os vários setores envolvidos com a questão.

As palavras da presidenta foram reforçadas pela Declaração dos Adolescentes participantes da 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil apresentada na Conferência, na qual os jovens destacam seu interesse em participar mais dos processos de decisão política. Ao apresentar suas propostas, os jovens ressaltaram possuir outra visão de mundo, diferente da dos adultos, que precisa ser cada vez mais considerada – a fim de evitar a repetição de erros cometidos pela atual geração de políticos e construir novas soluções.

Garotos trabalham na cata do sururu no Recife. Foto: Igor Ojeda

Garotos trabalham na cata do sururu no Recife. Foto: Igor Ojeda

Além da Declaração de Brasília e da elaborada pelas crianças e adolescentes, a Conferência foi palco da apresentação de outros documentos e iniciativas, nos quais a articulação e as parcerias também obtiveram destaque. Foi o caso, por exemplo, da criação do Grupo Interagencial sobre Trabalho Infantil das Nações Unidas (Giti). O grupo, que buscará levantar 20 milhões de dólares para um fundo próprio voltado ao desenvolvimento de suas ações, conta com a presença da OIT e de outras agências da ONU que desenvolvem ações de enfrentamento ao trabalho infantil: Organização Panamericana de Saúde/OMS; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud); Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), ONU Mulheres; Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO); Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef); e o Fundo das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco).

No encerramento da III Conferência, o presidente da OIT avaliou que o encontro, além de apresentar um impressionante número de participantes e países, e de representantes de governos, sociedade civil, empregadores e trabalhadores, também colheu um impressionante número de resultados. “E nos permitiu compreender muito melhor os problemas.”

O indiano Kailash Satyarthi, um dos responsáveis pela criação da Marcha Global contra o Trabalho Infantil, também compartilhou da avaliação positiva do evento, considerado “único” por ele. “Agora, precisamos fazer mais daquilo que já sabemos fazer e fazemos. Precisamos agir para tornar a Declaração final da Conferência realidade”.

Declaração de Brasília  

O documento final da III Conferência Global Sobre Trabalho Infantil, a Declaração de Brasília, ressalta que “o combate ao trabalho infantil e a Agenda de Trabalho Decente devem receber a devida consideração na agenda de desenvolvimento pós-2015 das Nações Unidas”.

Entre seus 24 pontos, a Declaração defende o aprofundamento da cooperação internacional, inclusive a cooperação “triangular” e entre países do Sul (Sul-Sul), além de afirmar que os participantes da Conferência buscarão “engajar a mídia nacional e internacional, as redes sociais, a academia e os órgãos de pesquisa, como parceiros na sensibilização para a erradicação sustentada do trabalho infantil”.

O documento registra a importância da continuidade da promoção do “engajamento de todos os setores da sociedade” na questão, bem como de “Ministérios e outros órgãos do Estado, de Parlamentos, dos sistemas judiciais, de organizações de empregadores e trabalhadores, de organizações regionais e internacionais e de atores da sociedade civil”.

A Declaração aponta, por outro lado, que “os governos têm o papel principal e a responsabilidade primária”, além de destacar a importância do “uso efetivo, coerente e integrado de políticas e serviços públicos nas áreas do trabalho, da educação, da agricultura, da saúde, do treinamento vocacional e da proteção social”.

Para os presentes à III Conferência, a formalização da economia e as ações de monitoramento, avaliação e as inspeções de trabalho são outras iniciativas a serem fortalecidas, bem como possíveis incrementos do arcabouço legal e institucional de cada Estado.

Em seu preâmbulo, a Declaração de Brasília sobre Trabalho Infantil reconhece “os esforços e os progressos realizados e ainda em andamento, a despeito da crise econômica e financeira global”, mas reconhece “a necessidade de acelerar os esforços em todos os níveis para erradicar o trabalho infantil, em particular suas piores formas até 2016”.

O documento cita, ainda, o “progresso feito pelos Estados na ratificação das Convenções 138, sobre Idade Mínima de Admissão ao Emprego, e 182, sobre a Proibição e Ação Imediata para a Eliminação das Piores Formas de Trabalho Infantil, da OIT, e reiterando a importância de promover sua ratificação universal e sua efetiva implementação”. Ainda nesse ponto, a Declaração convida “os países a considerar a ratificação de outros instrumentos relevantes, como a Convenção 189, sobre Trabalho Decente para Trabalhadores Domésticos, bem como a Convenção 129, sobre Inspeção do Trabalho na Agricultura, e a Convenção 184, sobre Segurança e Saúde na Agricultura”.

Embora já tenha ratificado as Convenções 138 e 182 da OIT, o Brasil ainda não ratificou a 129 e a 184, adotadas respectivamente em 1969 e 2001 pela Organização Internacional do Trabalho, nem a 189, de 2011.

Leia outras reportagens sobre a Conferência Global no site Promenino:
Desafios do Brasil para erradicação do trabalho infantil
Entrevista exclusiva com ministra Tereza Campello
Pouco debatido, trabalho infantil nos países desenvolvidos gera preocupação 
Plenária discute crianças e adolescentes em conflitos armados e o aumento da rede de exploração sexual 
Vulnerabilidade da agricultura na cadeia produtiva aumenta chances para o trabalho infantil

* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Combate ao trabalho infantil passa por estruturação de políticas públicas

Para cumprir as metas de erradicação, o Brasil precisa não apenas contar com fiscalização, mas investir em serviços públicos e promover com eficiência sistema de garantia de direitos

Por Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Para evitar que crianças e adolescentes ingressem de modo precoce no mundo do trabalho – e na vida adulta – não basta somente contar com ações que encontrem, verifiquem e afastem meninos e meninas vítimas desse tipo de exploração. Em geral, fiscalizações trabalhistas, promovidas por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), têm, no que diz respeito à tarefa de erradicar todas as formas de trabalho infantil, alcance limitado, porque agem mais no sentido de reprimir a prática do que preveni-la e garantir que não haja sua reincidência.

Se o Brasil almeja cumprir o compromisso de eliminar as piores formas de trabalho infantil até 2016 – e, até 2020, todas as formas de trabalho infantil –, deve contar também com um conjunto de políticas públicas que integrem um sistema que garanta efetivamente os direitos de meninas e meninos. Esse é, pelo menos, um dos principais entendimentos de autoridades e agentes da sociedade civil que lidam com o tema, ouvidos pela Repórter Brasil. Medidas como o fortalecimento do papel da educação e da saúde públicas são alguns exemplos.

Garoto busca restos em lixão, atividade considerada entre as piores formas de trabalho infantil. Foto: MPT-MA

Garoto busca restos em lixão, atividade considerada uma das piores formas de trabalho infantil. Foto: MPT-MA

O fato de o país ter reduzido substancialmente o número absoluto de crianças e adolescentes trabalhando nos últimos 12 anos demonstra, por um lado, considerável avanço na questão. Segundo o último Censo, 3,4 milhões de crianças e adolescentes de 10 a 17 anos estavam em serviço em 2010 – número que indica uma redução de 13,4% desde o ano de 2000. No entanto, esse ritmo é insuficiente para que o Brasil cumpra as metas estabelecidas para eliminar o trabalho infantil dentro do seu território, mesmo se levado em conta o fato de o MTE ter intensificado a quantidade de fiscalizações a partir de 2012.

De acordo com dados do Ministério do Trabalho, entre 2007 e 2011 a média anual de ações fiscais exclusivamente voltadas à busca de focos de jovens trabalhando foi de 2,7 mil em todo o Brasil; em 2012, foram 7.392 ações do tipo, mas uma quantidade menor de meninos e meninas foi afastada de atividades remuneradas. Em 2007, as inspeções encontravam, em média, seis pessoas com menos de 18 anos a cada incursão em empresas ou logradouros públicos. Agora, a média é de 0,9 – o que significa que, em parte das vistorias, não são encontrados indícios de exploração infanto-juvenil.

Para Isa Maria de Oliveira, secretaria-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), é insuficiente jogar a responsabilidade do combate ao trabalho infantil exclusivamente sobre as fiscalizações do MTE. “Não basta que as inspeções retirem as crianças e adolescentes do trabalho, é preciso articular um conjunto de políticas públicas para evitar que essas situações se repitam”, explica.

O posicionamento dela, entretanto, leva em conta um cenário mais complexo. Todos os casos de flagrantes de crianças e adolescentes em atividades de trabalho seguem um procedimento adicional para a orientação das vítimas. Ao encontrarem meninos e meninas em serviço, as ações de fiscalização os encaminham para outros órgãos responsáveis. Conselhos tutelares, procuradorias do Ministério Público do Trabalho (MPT), órgãos governamentais de assistência social e mesmo organizações do terceiro setor recebem esses jovens. O procedimento é referência para a comunidade internacional e varia conforme as características de cada região do país, conforme indica o auditor Luiz Henrique Ramos, chefe da divisão de fiscalização de trabalho infantil do MTE. “Fazemos uma entrevista para verificar as especificidades de cada caso e encaminhamos os jovens para os órgãos responsáveis”, detalha.

Principal região de aplicação das políticas de combate à pobreza, o Nordeste apresentou os melhores índices de redução do trabalho infantil entre 2000 e 2012 Foto: Leonardo Sakamoto

Para evitar que crianças sejam aliciadas pelo mundo do trabalho, deve-se fortalecer o sistema de garantia de direitos. Foto: Leonardo Sakamoto

“A fiscalização é eficiente, e referência. Deixa a desejar pela falta de recursos, como acontece com os sistemas de garantias”, acrescenta um dos coordenadores do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil (Ipec, na sigla em inglês) do escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, Antônio Carlos de Mello. Segundo o representante da OIT, a fiscalização cumpre o papel que deve cumprir no combate ao trabalho infantil, e a única ressalva diz respeito à falta de recursos, ponto do qual os auditores que lidam com o tema também reclamam.

É consenso, entre os fiscais do MTE, que faltam equipamentos e mais pessoal para as fiscalizações trabalhistas – sobram relatos do tipo entre os profissionais da área e o concurso para 100 novos agentes na área é apontado como insuficiente para suprir o déficit do serviço, segundo o sindicato da classe, o Sinait (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho).

A analogia entre os problemas de estrutura para os agentes de fiscalização do trabalho e as políticas públicas desenvolvidas com o objetivo de manter um sistema de garantias no Brasil para o combate do trabalho infantil faz parte de como a OIT entende a situação, segundo Antônio Carlos. “Existe um interesse internacional nos tipos de políticas públicas desenvolvidos no Brasil, que partem da atenuação da pobreza. O processo vem acontecendo, mas faltam recursos físicos e humanos”, afirma. “Enquanto essa estruturação não acontecer, vai ser difícil erradicar o trabalho infantil.”

Educação e ciclo da pobreza
“As políticas públicas devem atuar sobre o conjunto de questões que são relevantes e impactam a exploração de trabalho infantil”, pontua Isa Maria de Oliveira, do FNPETI. “O não sucesso [de alguns jovens] na escola é uma questão a se analisar. A escola não responde às necessidades daquelas crianças que podem enfrentar problemas familiares”, exemplifica. Segundo ela, há situações em que pais e mães, ao não observarem o bom desempenho escolar dos filhos, forçam a entrada dos meninos e meninas no mundo do trabalho. Nesses casos, os adultos, se não encontram resultados esperados dos filhos, não veem necessidade de a criança perder tempo com o estudo quando já poderiam estar trabalhando.

Menino participa de programa educativa contra o trabalho infantil. Foto: Secretaria Municipal de Educação de Alto Paraguai

Menino participa de programa educativo contra o trabalho infantil. Foto: Secretaria Municipal de Educação de Alto Paraguai (MT)

Uma leitura errada desse tipo de situação seria a de entender que os pais são culpados pelo fato de os filhos serem aliciados pelo mundo do trabalho. A representante do FNPETI entende, porém, que o problema está associado ao próprio modelo de funcionamento da educação no Brasil. Ela recomenda, por exemplo, uma escola em período integral, que assegure o acesso ao lazer de crianças e adolescentes e desenvolva um tipo de coordenação pedagógica que proporcione o pleno desenvolvimento na infância.

A fragilidade das escolas municipais e estaduais pode colaborar para que crianças e adolescentes estudem e também trabalhem, casos que evidenciam a pouca capacidade do sistema educacional de auxiliar no combate ao trabalho infantil. “Muitos jovens, por conta disso, já chegam à idade adulta com uma defasagem educacional”, pondera Antônio Carlos, da OIT. “Para a comunidade mais vulnerável, que de fato vai procurar trabalho por necessidade, essas dificuldades vão perpetuando o ciclo de pobreza. Por isso, deve haver o reconhecimento dessas deficiências por parte do Estado”, completa.

De um lado, o papel das políticas públicas deve ser o de proteger crianças e adolescentes que estejam mais vulneráveis ao aliciamento para o trabalho infantil por meio da garantia de direitos, com a estruturação de serviços de educação, saúde e transporte, em quantidade e com qualidade. De outro, o de articular redes que fortaleçam os vínculos comunitários e familiares dessas pessoas em situação de vulnerabilidade. É, de modo geral, o que entendem os representantes das entidades que lidam com o tema. O coordenador do Ipec aponta que certas medidas já vêm sendo tomadas, como a implementação de algumas escolas de período integral pelo país.

Para a secretária executiva do FNPETI, está claro que a erradicação do trabalho infantil passa pela reestruturação do próprio Estado. Crianças e adolescentes que trabalham não conseguem se desenvolver na plenitude e, portanto, têm dificuldade em almejar um emprego melhor que o dos pais e alcançar uma vida mais confortável. “Não há desenvolvimento sustentável onde há trabalho infantil. O Brasil, inclusive, tem carência de profissionais qualificados”, observa, em referência às dificuldades proporcionadas. “A permanência do trabalho infantil perpetua a pobreza e a desigualdade no Brasil. Não rompe e contribui para a manutenção do ciclo de miséria”, conclui.

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Crianças catam sururu que abastece quiosques e restaurantes do Recife

Tipo de marisco muito apreciado na culinária do Recife, o sururu é frequentemente pescado por crianças e adolescentes de comunidades ribeirinhas urbanas da cidade

Por Igor Ojeda, da Repórter Brasil
do Recife (PE)

Normalmente é assim. Os ribeirinhos da bacia do Pina, no Recife, saem para pescar o sururu ainda na barriga da mãe. Quem brinca é Ronaldo, morador da comunidade Ilha de Deus, enquanto está na superfície despejando o molusco numa galeia – em seguida, submerge novamente. A brincadeira, no entanto, tem o seu fundo de verdade, como diz o ditado. Hoje com 20 anos, o rapaz começou no ofício aos cinco. Espécie de marisco pequeno, a iguaria é muito comum em mercados, feiras, bares e restaurantes da capital pernambucana. Em geral, é preparada com leite de coco – quando ganha um sabor adocicado – e servida com farinha de mandioca e limão. Seu caldinho, apreciado tanto em restaurantes “finos” quanto em quiosques de praia, é considerado afrodisíaco. “Desde que nasci trabalho com o sururu. Com cinco anos já estava na maré. Chegava a faltar na aula para ir pescar”, conta Ronaldo, que parou de estudar no sexto ano do ensino fundamental.

Quando este mergulha para pegar mais sururu, quem fala é Gustavo*, parceiro de pescaria. Sentado na beira da canoa já repleta de bacias com o molusco, ele mexe freneticamente as pernas, de forma alternada, dentro da galeia – espécie de caixote – mergulhada na água lodosa. “Estou lavando o sururu”, explica o garoto, de 15 anos. O movimento repetitivo não é o único desconforto. O contato com a casca fina do marisco causa inúmeras feridas na sola de seu pé. “Não tem jeito, paciência, tem de fazer isso. As feridas a gente lava na maré, que a maré faz sarar.”

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Ronaldo volta à superfície e despeja os sururus na galeia para Gustavo lavá-los (Fotos: Igor Ojeda)

Estamos nas proximidades das pontes Governador Paulo Guerra e Engenheiro Antônio de Góes – que ligam a Zona Sul ao Centro e à Zona Norte do Recife –, no meio da bacia do Pina, ecossistema situado em plena área urbana, na parte interna do porto da capital pernambucana, formado pela confluência dos rios Capibaribe, Tejipió, Jordão e Pina. Da Ilha de Deus, Gustavo e Ronaldo remaram bons minutos até um banco de lodo onde era possível pescar o sururu. Em uma das margens, pode-se avistar as casas de alvenaria da comunidade Brasília Teimosa, antiga favela de palafitas que se tornou famosa nacionalmente depois da visita do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva apenas uma semana após sua posse, em janeiro de 2003. No lado oposto, destacam-se edifícios de alto padrão.

Trabalho infantil
A pesca do sururu é uma das principais atividades econômicas das comunidades ribeirinhas dessa área, todas formadas há décadas. E, há décadas, os moradores desses locais começam desde criança a exercer esse tipo de trabalho, normalmente acompanhando os pais, que, por sua vez, não têm condições financeiras de sustentar a família sozinhos. Como acontece em muitos outros casos, na coleta desse molusco o trabalho infantil é naturalizado.

É a maré que determina que horas Gustavo e Ronaldo começam a trabalhar. Tem dias que eles saem às quatro da manhã. Outros, às sete. Os ribeirinhos gostam de aproveitar as marés baixas, pois desse modo o sururu fica mais próximo da superfície. Há vezes, porém, em que é preciso descer a cinco metros de profundidade, sob o risco de faltar fôlego e sentir câimbras. “Já salvei tanto criança quanto gente grande de se afogar”, conta Gustavo. Em geral, dependendo do rendimento, os dois amigos ficam de duas a quatro horas pescando o molusco. Assim que voltam para casa, eles o cozinham e pagam alguém da própria comunidade para catá-lo. “Catar” o sururu significa, na verdade, abri-lo um a um e retirar sua carne. O trabalho, igualmente muitas vezes realizado por crianças, é extremamente desgastante e pode causar feridas nas mãos por conta da casca afiada do pequeno marisco.

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Muitos moradores da comunidade do Pina vivem em palafitas sobre o mangue

Gustavo e Ronaldo costumam vender o produto “final” no Mercado São José, o mercado municipal da cidade. “Vendemos a seis, cinco reais o quilo. Agora está mais barato. Tem que trabalhar mais”, diz o adolescente de 15 anos, que usa parte do que recebe para comprar roupas e deixa o resto em casa, onde vive com a mãe e duas irmãs, de 12 e sete anos. “Com o que ganhamos, dá pelo menos para sobreviver.” Para seguir trabalhando, Gustavo abandonou a escola ainda mais cedo que Ronaldo, na quinta série. Mas não é o que quer fazer a vida toda. “Ainda sou adolescente. Quando crescer quero arrumar um serviço melhor. Quero ser jogador de futebol do Sport”, revela o torcedor fanático do time pernambucano.

O decreto presidencial 6.481, de 2008, inclui tanto a coleta de mariscos quanto as atividades em mangues e lamaçais ou que envolvam mergulhos na lista de piores formas de trabalho infantil. De acordo com o documento, além das intempéries climáticas, as crianças e adolescentes que pescam sururu estão expostas a “posturas inadequadas e movimentos repetitivos; acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes; horário flutuante, como as marés; águas profundas”. Como resultado, podem sofrer queimaduras na pele, envelhecimento precoce, câncer de pele, desitratação, doenças respiratórias, fadiga, dores musculares nos membros e na coluna, ferimentos, distúrbios do sono e afogamento.

Já meninos e meninas obrigadas a mergulhar em suas atividades laborais, como é o caso da coleta de mariscos, correm o risco de se afogar, terem a membrana do tímpano perfurada e sofrerem de uma série de enfermidades, como embolia gasosa, otite, sinusite e labirintite. O trabalho em mangues e lamaçais, por sua vez, expõe crianças e adolescentes com menos de 18 anos à umidade, cortes e perfurações e contatos com excrementos, situações que podem resultar em rinites, bronquites, dermatites e leptospiroses, entre outras doenças.

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Na foto acima, a pobreza e poluição da comunidade do Pina contrasta com o shopping de luxo ao fundo. Abaixo, a comunidade vista do alto (clique para ver mapa ampliado)

Contraste
Quem “guia” a reportagem é Daiane. Moradora da Ilha de Deus, ela também costumava pescar sururu, “ofício” que igualmente começou a exercer desde pequena. Hoje, aos 20 anos, faz trabalhos de manicure e de diarista e pretende fazer faculdade de engenharia num futuro próximo. “Normalmente, quem vai para a maré é o homem, enquanto a mulher fica na cata, muitas vezes com a ajuda dos filhos. Mas, quando não tem homem, vai a mulher mesmo”, explica. Há alguns anos, quando ainda era adolescente, a jovem participou de uma ação do Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social (Cendhec) contra o trabalho infantil na sua comunidade. O resultado, segundo ela, foi muito bom. “Diminuiu a incidência de trabalho infantil na pesca do sururu na Ilha de Deus.” Nos últimos dois anos, além disso, a região foi urbanizada pela Prefeitura do Recife, política que fez melhorar as condições de moradia da população local.

Melhorias que ainda não chegaram para a população ribeirinha do Pina. Na “entrada” da comunidade, no entanto, a realidade é um tanto distinta. Inaugurado em outubro do ano passado, o RioMar Shopping destoa na paisagem. Terceiro maior centro de compras do Brasil, atrás do Shopping Leste Aricanduva, de São Paulo, e do Salvador Shopping, o estabelecimento é destinado em parte ao consumo de alto luxo, com lojas como Hugo Boss, Chanel Fragrance & Beauté, Daslu, e Diesel. Partindo do ponto de encontro no RioMar, conforme Daiane e a reportagem caminham em direção aos manguezais, as casas simples de alvenaria vão dando lugar a apertadas construções de madeiras, e ruas asfaltadas tornam-se ruelas e becos de terra. Espalhadas pelo chão, bacias cheias de sururu. Sob um telhado de zinco, uma mulher descasca o molusco.

Numa dessas moradias precárias, vive, com a família, Mariana*. “Pego sururu desde os dez anos, para ajudar minha mãe”, diz a garota, hoje com 14 anos. Ela costuma ir com o marido de uma das irmãs e um vizinho, ambos adultos. A tarefa é alternada: às vezes fica incumbida de lavar o marisco pescado na galeia, o que causa feridas nos pés. Outras vezes, ela própria mergulha para buscá-lo. “A água bate no peito”, conta. Por causa do trabalho, a menina parou de estudar na quarta-série. Não chegou a aprender a ler e escrever.

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Para ajudar a mãe, Mariana pesca sururu desde os dez anos de idade

Palafitas
Acompanhada de Daiane e da reportagem, Mariana sobe em uma das canoas ancoradas na beira do mangue e começa a remá-la em direção ao mar, distante alguns quilômetros – no meio do caminho, alguns minutos depois, encontraríamos Gustavo e Ronaldo. Do barco, a visão é ainda mais impressionante. Inúmeras palafitas avançam sobre o rio. Sacos de lixo e entulhos de todo o tipo, e ratos correndo na borda ou até dentro da água compõem a paisagem. Após alguns minutos, o RioMar Shopping surge imponente ao fundo. Mariana liga o motor. “Quando eu pescava, era só no remo. Agora alguns barcos têm motor. O pessoal pagar uns R$ 500 para um morador construir a canoa. O motor custa uns R$ 150”, explica Daiane.

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Segundo Edlene, está cada vez mais difícil sobreviver da pesca do molusco

A primeira parada é na Ilha de Deus, onde várias mulheres e algumas meninas estão sentadas catando o sururu. Uma delas é Edlene Maria Alves da Silva, de 45 anos. “Cheguei novinha aqui. E desde que cheguei, trabalho com o sururu. Antes só pescava, depois comecei mais a catar. Mas ainda pesco.” Segundo ela, está cada vez mais difícil sobreviver com a venda do molusco. “Está chovendo muito. O braço de mar aqui é fraco. Quando chove dois, três dias, o sururu morre, porque a água fica salobra, e ele vive mais na água salgada”, lamenta.

A auditora-fiscal Paula Neves, coordenadora do Projeto de Combate ao Trabalho Infantil da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE), lembra que no Recife as crianças e adolescentes não ficam restritas à pesca e à cata do sururu. Muitas o vendem nas praias da cidade. A comercialização de alimentos e outros produtos na orla da capital pernambucana é uma das atividades com maior incidência de trabalho infantil. “Os meninos que trabalham na praia normalmente param de estudar na oitava série. Muitos deles dizem que trabalhando por três ou quatro dias por semana ganham mais do que o pai”, diz Paula.

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Menina da comunidade Ilha de Deus cata sururu: risco de ferimentos

*nomes alterados para preservar a identidade dos entrevistados

Leia também:
Meninos do mangue, a cata de caranguejos em João Pessoa (PB)

Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Meninos do mangue

Crianças e adolescentes trabalham na cata de caranguejos na capital da Paraíba, prática que, numa consequência extrema, levou ao afogamento de um menino de 11 anos

Por Igor Ojeda, da Repórter Brasil
de João Pessoa (PB)

Distante alguns quilômetros das movimentadas praias de Tambaú e do Cabo Branco, o bonito centro histórico de João Pessoa, capital da Paraíba, abriga centenas de edificações de diferentes arquiteturas e épocas. Igrejas, sobrados e casas, além de ruas e praças, compõem o cenário. Barroco, rococó, colonial, maneirismo, art noveau… há estilos para todos os gostos. Caminhando rumo à chamada Cidade Baixa o visitante se depara com um conjunto compacto de casarios coloniais. Chama a atenção a igreja e o antigo Hotel Globo, que hoje funciona como centro cultural. Mal sabe o turista, no entanto, que logo atrás desses prédios “esconde-se” uma dura realidade: o Porto do Capim, comunidade de baixa renda localizada às margens do rio Sanhauá.

Muitos moradores do Porto do Capim vivem em barracos à beira do mangue (Fotos: Igor Ojeda)

Muitos moradores da comunidade vivem em barracos à beira do mangue (Fotos: Igor Ojeda)

São cerca de 350 famílias pobres vivendo sob condições muito difíceis, morando em casas simples de alvenaria ou barracos de madeira à beira do mangue. Seus moradores, em geral, trabalham em oficinas mecânicas e madeireiras próximas, ou como descarregadores de caminhão, entre outras ocupações. Muitos recebem o Bolsa Família, que não é suficiente, porém, para o sustento da famílias. Na comunidade não há posto de saúde, quadra poliesportiva ou equipamentos culturais. E a única escola pública atende apenas alunos da primeira à quarta série do ensino fundamental.

A total ausência de opções de lazer e cultura e a necessidade de complementar a renda se traduzem numa triste realidade que acompanha o Porto do Capim há anos. Crianças e adolescentes passam horas coletando caranguejos-uçás e guaiamuns – outro tipo de caranguejo – nos mangues locais para depois os venderem para a população da cidade. “Durante o ano inteiro, eles armam a ratoeira pela beira do mangue para pegarem o guaiamum e depois saem vendendo. Já durante a andada do caranguejo-uçá, é muita criança dentro do rio. É mais perigoso, porque precisa atravessar o rio, pode cair dentro da água”, explica Sebastião Camelo, presidente da Associação dos Moradores do Porto do Capim. A andada é o período em que há o acasalamento e a desova dos caranguejos-uçás, o que os leva a ficarem mais tempo fora da toca, tornando-os presas fáceis. A cata desses crustáceos é proibida durante essa época.

Para vender e para comer
“Os meninos pegam os caranguejos tanto para comer quanto para vender. A criança às vezes quer uma roupa, mas o pai não pode dar. E muitas vezes precisa levar alguma comida para casa”, conta Sebastião. “Aqui, a menor casa tem cinco filhos.” Segundo ele, há na comunidade cerca de 400 crianças de um a dez anos de idade. O Bolsa Família, explica, não alcança para pagar todas as contas. “Tem família que às vezes bate em casa porque não tem um prato de comida para comer”, diz.

Sebastião mostra o local onde o menino morreu afogado quando catava caranguejo

Sebastião mostra o local exato onde o menino morreu afogado quando catava caranguejo, em janeiro deste ano

A atividade em mangues é considerada uma das piores formas de trabalho infantil, de acordo com o decreto presidencial 6.481, de 2008. Segundo tal documento, nesse tipo de trabalho crianças e adolescentes são expostos à umidade e excrementos, cortes e perfurações e picadas de serpentes. Além disso, podem contrair doenças como rinite, resfriado, bronquite, dermatite, leptospirose e hepatite viral. “Aqui as crianças se machucam muito, pois no mangue tem muito galho, tocos, além de entulho jogado, como vidro, ferros, até pedaços de vasos sanitários. É muito arriscado. Tem um caso de um morador que quando era criança chegou a rasgar o pé num ferro, de um lado ao outro. Levou 36 pontos. Além disso, o próprio caranguejo pode cortar o dedo dos meninos”, explica o presidente da Associação dos Moradores do Porto do Capim.

Tragédia
Uma consequência extrema do trabalho infantil no mangue da comunidade aconteceu em janeiro deste ano, quando uma criança de 11 anos morreu afogada enquanto catava caranguejo. “A maré estava seca. Quando o caranguejo correu, o menino escorregou e o barro o puxou para baixo. Ele ficou em pé, atolado, encoberto pela lama. Não tinha adulto perto na hora. Quando chegamos para tentar salvá-lo, não o encontrávamos, pois pensamos que a maré o tinha levado. Mas ele estava exatamente onde tinha afundado. Demoramos 40 minutos para achá-lo”, lembra Sebastião. Os bombeiros e paramédicos tentaram reanimar a criança, mas ela já chegou morta ao hospital. “Ele era muito brincalhão, todo mundo gostava dele.”

À Repórter Brasil, o pai do menino nega que o filho, que ainda estava aprendendo a nadar, catava caranguejo para vender. “Eu dizia a ele que não havia precisão, pois eu sou bem empregado, trabalho na madeireira. Trabalho muito para que meus filhos não precisem trabalhar. Tanto que ele não vendia, o que ele pegava doava para a comunidade. Eu não deixava, não queria que ele catasse caranguejo nem por esporte. Sei que o rio é fundo. Mas ele se juntou com outros meninos… infelizmente aconteceu”, diz o homem, que tem outros cinco filhos. Segundo ele, no mesmo dia do acidente um vizinho o avisou que o menino tinha lhe dado dez caranguejos. “Quis pagar, mas meu filho não aceitou. Ele era minha vida, mas era teimoso. Foi estripulia de pirralho.”

Gabriel*, de oito anos, pega caranguejo desde os cinco

Gabriel*, de oito anos, pega caranguejo e guaiamum desde os cinco

Um dia antes da tragédia, um incidente inusitado assustou a comunidade. Um boato de que Gabriel* havia caído do trapiche local causou correria entre os moradores. Mas o garoto de oito anos estava longe dali, acompanhando a mãe em uma missa. Até hoje não se sabe o que gerou o rumor, mas a população do Porto do Capim consideram-no um aviso do que ocorreria 24 horas depois. Para completar, o menino era primo da vítima de afogamento. “Eu não estava junto não. Ele passou de manhã para o mangue, mas minha mãe mandou voltar. De tarde voltou, escondido”, conta Gabriel, que desde os cinco anos de idade também pega caranguejo-uçá e guaiamum. “Hoje eu estava pegando guaiamum na ratoeira. Caranguejo-uçá a gente pega na andada, com a mão, com pau, com a chinela”, explica. O garoto diz que se corta com frequência, em pedaços de vidro e madeira. “Pego mais ou menos uma sacola por dia [cerca de 15 quilos], para comer e para vender. Uma parte eu levo para casa, outra eu dou para minha tia cozinhar e vender no bar dela. O dinheiro eu dou para minha mãe guardar.”

Políticas públicas
O falecimento do menino de 11 anos no Porto do Capim levou o procurador-chefe do Trabalho no estado, Eduardo Varandas, a abrir um procedimento para acompanhar a implementação de políticas públicas de combate ao trabalho infantil na Paraíba. Quem está à frente do caso é a procuradora Edlene Lins Felizardo, titular da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes (Coordinfância) no estado. Ela está propondo à Prefeitura de João Pessoa a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) contendo uma série de medidas a serem tomadas para melhorias das condições de vida no Porto do Capim, como sua revitalização. “Nesse TAC, incluí não apenas a questão dessa comunidade, mas também diversos outros assuntos relacionados ao trabalho infantil na cidade. Temos problemas também nos mercados, feiras livres e praias, por exemplo, onde crianças costumam vender amendoins”, diz a procuradora, que também acionou o Conselho Tutelar por meio de uma notificação recomendatória. Nesta, pede-se que o órgão fiscalize a incidência de trabalho infantil nos mangues e comunique a situação ao Ministério Público do Trabalho e à Secretaria de Assistência Social do município, para que as crianças sejam encaminhadas, por exemplo, ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) e ao Centro de Referência de Assistência Social (Cras), ambos do governo federal.

A procuradora Edlene Lins Felizardo conversa com Sebastião

A procuradora Edlene Lins Felizardo conversa com Sebastião, da associação de moradores

Edlene espera que a Prefeitura formule uma solução que contemple as necessidades da comunidade do Porto do Capim. “Há o problema de ser uma ocupação em uma área da União. Mas você não pode simplesmente pegar as famílias e expulsá-las. É um problema político que a Prefeitura tem de resolver”, opina. Segundo Sebastião, da associação de moradores, o ideal seria revitalizar o local, reformando as casas, e construir um píer para ser usado como ponto turístico.

A reportagem falou com a assessoria de imprensa da Prefeitura de João Pessoa, que a pôs em contato com a secretária de Desenvolvimento Social Marta Geruza Gomes. Esta, por sua vez, não se posicionou sobre o assunto até o fechamento desta matéria.

* nome alterado para preservar a identidade do entrevistado

Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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