Do Oiapoque ao Chuí: o trabalho infantil nas fronteiras

Fiscalização falha dificulta combate ao trabalho infantil nos municípios de fronteira dos extremos Norte e Sul do Brasil

Por Stefano Wrobleski, para a Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Mais de 4 mil quilômetros separam o município amapaense de Oiapoque, no extremo Norte do Brasil, do Chuí, município gaúcho no extremo Sul. Os dois estão nos limites territoriais brasileiros: enquanto no Oiapoque um rio separa a população da Guiana Francesa, os habitantes do Chuí estão a uma rua de distância da vizinha uruguaia, que tem quase o mesmo nome: Chuy. Além de serem pontos extremos do país, o trabalho infantil e a falta de fiscalização – sempre mais eficiente do lado de lá da fronteira – são realidades que aproximam locais tão distantes.

No Chuí, uma força-tarefa realizada no início de novembro pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) detectou diversas irregularidades trabalhistas, além de crianças e adolescentes trabalhando com o empacotamento dos produtos comprados pelos clientes nos supermercados da cidade. O Conselho Tutelar do município contabilizou, na época, que quase todos os cerca de 50 jovens trabalhando no Chuí “faziam caixinha”, como é conhecida a atividade pela qual os consumidores pagam com esmolas. A presidenta do Conselho Tutelar, Sonia Caetano, explica que há uma naturalização do trabalho infantil: “As pessoas acham que é melhor estar trabalhando do que fazendo outra coisa, porque pensam que as crianças estariam nas ruas se não fosse isso”. Ela conta do caso de um homem que buscava emprego na cidade acompanhado de seu filho, de oito anos: “O dono [de um supermercado] disse a ele: ‘pra ti eu não tenho, mas tu deixas o teu filho aqui que ele pode fazer caixinha’”.

Força-tarefa do MPT e do MTE em reunião com conselheiras tutelares de Chuí (Foto: MPT)

Força-tarefa do MPT e do MTE em reunião com conselheiras tutelares de Chuí (Foto: MPT)

Alexandre Marin Ragagnin, procurador do MPT que acompanhou a operação, é categórico: “No lado brasileiro não tem fiscalização”. A unidade do MTE mais próxima fica a 200 quilômetros, o que dificulta os trabalhos. Ele explica que, como é mais difícil trabalhar no lado uruguaio, as crianças e adolescentes vêm para o Brasil. Alexandre conta também que encontrou, na operação, um menino de 12 anos que trabalhava desde os nove embalando compras em um supermercado: “Quando a fiscalização chegou, ele entrou na loja e saiu com uma compra, se misturando aos demais consumidores, o que não nos permitiu alcançá-lo”. Outra dificuldade é que, por ser uma fronteira seca, muitas vezes os pais das crianças flagradas são uruguaios, o que impede a ação dos fiscais.

A solução foi notificar cerca de 70 das principais lojas do município, que tem cerca de 5 mil habitantes no lado brasileiro, para que não empreguem crianças e adolescentes em seus estabelecimentos. Em dezembro, o MPT e o MTE devem voltar ao Chuí para uma audiência pública que conscientize empresários e o poder público local dos problemas e infrações legais quanto ao trabalho infantil.

Quatro mil quilômetros ao norte, o Ministério Público do Estado do Amapá (MP-AP) é uma das entidades que promove a Caravana Contra o Trabalho Infantil no Estado. O pequeno número de municípios do Amapá (16) tornou possível a realização da atividade em todos eles. Com oficinas, palestras e audiências públicas, o objetivo é unir esforços das esferas federal, estadual e municipal contra o problema, além de conscientizar as instituições governamentais competentes.

No Oiapoque, no entanto, isso não foi totalmente possível, de acordo com Marcos dos Santos Marinho, auditor fiscal do MTE que participou da atividade. Para que pudessem comparecer à audiência que discutiu o enfrentamento ao trabalho infantil no município, a administração dispensou os servidores dos departamentos que devem dar atenção a crianças e adolescentes vulneráveis, como o Conselho Tutelar e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas). Apesar da dispensa, Marcos conta que foram poucos os servidores que compareceram. Além disso, ele disse à Repórter Brasil que “no dia, a sede do Creas estava fechada quando fomos lá”.

O município de 20 mil habitantes não está isento de problemas. Há dois anos a prefeitura de Oiapoque firmou um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com o MPT se comprometendo a tomar medidas para combater o trabalho infantil. Mesmo sendo um local de fronteira, o auditor fiscal conta que “Oiapoque não tem controle sobre as atividades dos estrangeiros”. Ele revela que a equipe que conduziu a Caravana Contra o Trabalho Infantil na cidade ouviu diversos relatos sobre meninas que cruzam o rio que separa o município do seu correspondente franco-guianense, São Jorge do Oiapoque, para se prostituir.

Além disso, Marcos explica que fez uma fiscalização recentemente na cidade e flagrou três adolescentes trabalhando em um lava-rápido – deles, dois têm 16 e um tem 17 anos. Apesar da idade, que permite o trabalho em certas circunstâncias, essa atividade é proibida a eles por causa do contato com substâncias químicas perigosas e faz parte da Lista TIP, que contém as piores formas de trabalho infantil. O auditor fiscal explica que o dono do lava-rápido chegou a consultar o Conselho Tutelar de Oiapoque e o servidor que o atendeu autorizou o trabalho. Quando procurado pela fiscalização, o funcionário do Conselho Tutelar afirmou desconhecer a Lista TIP.

Apesar de estar em vigor desde 2008, a lista também não era conhecida no Chuí. De acordo com Alexandre, o procurador do MPT que acompanhou a força-tarefa do início de novembro, “havia uma orientação equivocada de que crianças de 14 anos poderiam trabalhar”. Segundo a legislação vigente, nenhuma criança com menos de 14 anos pode trabalhar. Os jovens entre 14 e 15 anos só podem fazê-lo na condição de aprendiz – o que exige o acompanhamento de um empregado monitor – em atividade que não esteja na lista das piores formas de trabalho infantil.

A Repórter Brasil não conseguiu localizar nenhuma autoridade do município de Oiapoque para comentar as denúncias do auditor fiscal Marcos dos Santos Marinho.

(Foto da capa: Gijlmar/Flickr)

* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Crianças trabalham como ambulantes nos arredores da Arena Fonte Nova, em Salvador

Enquanto o luxo predomina no lado de dentro de um dos estádios da Copa do Mundo, no lado de fora o trabalho infantil é comum na venda de cerveja, nas barraquinhas de churrasco e na coleta de latas de alumínio, entre outras atividades

Por André Uzêda, para a Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Salvador (BA) – Em uma sintomática contradição biológica, a Arena Fonte Nova, estádio baiano erguido para a Copa do Mundo de 2014, tem exposto suas vísceras do lado externo da arquitetura que emoldura sua construção. Divididas entre brasas incandescentes, bandejas mal equilibradas e servindo latinhas de cerveja, um batalhão de crianças executa atividades profissionais sob olhares pouco desconfiados dos que ali transitam.

É um domingo, 27 de outubro, e os torcedores se aglomeram nos arredores do estádio para acompanhar o embate entre Bahia x Atlético-PR, em Salvador, pela 31ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2013.

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Demolida e reconstruída para a Copa do Mundo, Fonte Nova apresenta interior luxuoso. Foto: Secom-BA

As crianças e jovens que compõem esse cenário da exploração aparentam idade entre 8 e 17 anos e se agrupelham entre as mais diversas atividades informais ofertadas no espaço. Tal qual uma ciranda desencontrada, algumas vendem cervejas acompanhadas dos pais, enquanto outras recolhem latas de alumínio abandonadas no chão. Há ainda as que, próximas ao braseiro, onde são assadas carnes para serem comercializadas, ignoram os perigos da inalação da fumaça ou riscos de queimaduras com a imprudência própria da idade. A brutalidade envolve a atmosfera do lugar, sob olhares embrutecidos de quem enxerga aquilo como cenário habitué.

O barulho ambiente, exagerado a ponto de extrapolar as cercanias do lugar, parece sufocar a presença da pequena Vanessa**, de apenas 9 anos. A garota, apenas mais uma entre tantas outras crianças submetidas ao trabalho infantil naquele espaço, mantém o olhar em um ponto fixo, evasivo.

A menina carrega um curativo acima do olho direito, fruto de uma traquinagem infantil, enquanto apostava corrida durante o recreio escolar. Quando perguntada pela reportagem por que, mesmo tão nova, precisa ir trabalhar, sorri timidamente: “Fala com minha mãe, moço”.

“Melhor do que ficar na rua”
Há 20 anos, a senhora de 52 anos estabeleceu seu ponto de venda de cerveja em jogos do Bahia. A bebida é armazenada em um isopor largo, equilibrado em um carrinho de mão. Ela é mãe da pequena desconfiada, embora também acumule a função de chefia nessa relação familiar. “Tem pouco tempo que comecei a levá-la para me acompanhar. Vanessa fica mais aqui para cuidar das coisas enquanto eu vou ao banheiro ou preciso trocar um dinheiro. Não posso deixar o lugar vazio”, pontua a matriarca.

Em média, estima a ambulante, em um dia de jogo é possível arrecadar até R$ 400 com a venda de bebidas alcoólicas (proibidas no interior do estádio por resolução da CBF). Com o marido encostado pelo INSS, após cirurgia delicada, ela virou responsável por sustentar a casa ao mesmo tempo que cuida da sua prole. “Essa é outra razão pela qual levo Vanessa comigo. É melhor do que ela ficar na rua, sem ter o que fazer, desocupada…”, argumenta.

Vanessa bebe água enquanto ajuda sua mãe a vender cerveja do lado de fora do estádio. Foto: André Uzêda

Vanessa bebe água enquanto ajuda sua mãe a vender cerveja do lado de fora do estádio. Foto: André Uzêda

Explicação comum
De acordo com a socióloga baiana Inaiá Carvalho, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), dois elementos na fala dessa vendedora resumem a condição do trabalho infantil em território brasileiro. “Esse problema [trabalho infantil] ainda é visto pelos pais como um fator educacional. Na falta de uma escola em tempo integral, eles acham que, muitas vezes, é melhor ter o filho por perto, mantendo-o longe da rua, do crime e de tantos outros problemas”, diz a pesquisadora, que emenda: “A outra condição é estritamente social. O trabalho na infância está ligado à criança pobre, estritamente. Não se fala dessa questão entre jovens e crianças de classe média, por exemplo”, afirma. Especialistas na questão costumam defender que em vez de se criminalizar os pais, é necessário realizar um trabalho de conscientização e de fornecimento de garantias sociais.

A socióloga, porém, diz enxergar avanços consistentes nos últimos anos em relação ao combate ao trabalho infantil no Brasil. “Desde a década de 1990, os governos vêm sistematicamente trabalhando contra essa chaga social. A própria sociedade despertou de uma postura de passiva naturalidade para uma de horror escandalizado diante do trabalho infantil, sobretudo aquele mais pesado, na extração do sisal, carvoarias e plantação de cana-de-açúcar. Desde o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, sancionada em 1990), os números de casos estão diminuindo”, afirma.

Sem escola em tempo integral
Apesar da redução de 13,44% na última década, entre jovens que trabalham dos 10 aos 17 anos, segundos dados do último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística), os números apontam estagnação da exploração infantil como mão de obra na zona rural e no setor informal da economia, como é o caso das crianças que trabalham ao redor da Fonte Nova. “São duas vertentes que tiveram baixas importantes, mas estagnaram. Chegamos a um ponto em que a única forma de resolver essa questão é com a redução drástica da pobreza e com escolas com acompanhamento integral para os jovens”, afirma a professora Inaiá Carvalho.

A ausência de uma instituição de ensino que prolongue suas atividades em mais de um período é a principal causa, por exemplo, para Gilvan**, de 14 anos, acompanhar uma senhora de 60 anos na sua rotina de trabalho. O garoto, que recolhe dinheiro enquanto ela assa espetos de carne, não possui qualquer relação de parentesco com a vendedora.

A reportagem encontrou o adolescente trabalhando nos arredores da Arena Fonte Nova em uma quinta-feira à noite, dia 24 de outubro, momentos antes da partida Bahia x Nacional de Medellín (Colômbia), pelas oitavas de final da Copa Sul-Americana. “Ele é meu vizinho, lá do subúrbio ferroviário. A mãe dele sai para trabalhar e passa o dia todo na rua, só volta de noite. Ela que me pede para levá-lo para o trabalho, porque ele pode juntar um dinheiro e também fica mais seguro”, diz a churrasqueira.

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No total, nova arena custou R$ 688,7 milhões, a serem pagos em 15 anos. “Nunca entrei lá não”, revela Vanessa. Foto: Carol Garcia/Secom-BA

Copa do Mundo
O olhar de Vanessa, perdido no horizonte, em algum momento talvez se depare com a suntuosidade da Arena Fonte Nova. A praça esportiva seria levantada ao custo inicial de R$ 591,7 milhões, celebrados por um contrato de PPP (Parceria Público Privada) entre governo do estado e as construtoras OAS e Odebrecht. Entretanto, um aditivo contratual de R$ 97,7 milhões elevou o valor final do empreendimento para R$ 688,7 milhões, no total. A serem pagos nos próximos 15 anos.

Tal grandeza numérica, traduzida em conforto, rótulos de sustentabilidade e embalagem de segurança para o mundial brasileiro, ainda que fisicamente próximos parecem léguas de distância da realidade da pequena Ana Carolina. “Nunca entrei lá não”, confidencia a garota, em referência ao luxuosíssimo estádio.

Enquanto embala sonhos do lado de dentro, fora o estádio expõe suas vísceras.

* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

** Os nomes são fictícios para preservar a identidade das fontes.

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