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Operação flagra trabalho infantil em plantações no interior de São Paulo

Fiscalização encontrou 21 meninos e meninas trabalhando na colheita de vegetais em seis municípios paulistas. A maior dificuldade, no entanto, é superar aceitação cultural do problema

Por Stefano Wrobleski, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Uma fiscalização conjunta do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministério Público do Trabalho (MPT) localizou 21 crianças e adolescentes vítimas de trabalho infantil em pequenas propriedades de seis municípios do interior de São Paulo. Seis tinham entre seis e doze anos. Elas colhiam beterrabas de chinelos ou descalços, sem qualquer proteção. Alguns exibiam ferimentos nas mãos.

Entre as vítimas, seis crianças com menos de 12 anos trabalhavam na colheita de beterraba (Fotos: MPT-15)

Entre as vítimas, seis crianças com menos de 12 anos trabalhavam na colheita de beterraba (Fotos: MPT-15)

Os municípios de Itobi, Casa Branca, São José do Rio Pardo, Santa Cruz das Palmeiras, Vargem Grande do Sul e Mococa ficam a cerca de 250 quilômetros da capital paulista. A região tem 223 mil habitantes e aproximadamente 10 mil trabalhadores no meio rural, divididos entre 1,2 mil produtores. Eles se distribuem principalmente nas colheitas de batata, cebola, beterraba e laranja.

A diligência, que aconteceu entre 9 e 14 de setembro, faz parte de uma operação maior dos dois órgãos, que visa reduzir a incidência de trabalho infantil e irregularidades trabalhistas na região. Em agosto, uma audiência reuniu cem produtores rurais na Câmara Municipal de Itobi com o objetivo de conscientizá-los sobre a proibição do trabalho de crianças e adolescentes em plantações, que ainda é comum na região.

Trabalhador com os pés descalços: falta de proteção é recorrente

Trabalhador com os pés descalços: falta de equipamento de proteção é recorrente

Entre os desafios para o combate ao emprego de meninos e meninas nas lavouras está a aceitação cultural; a prática atravessa gerações. Por envolver condições insalubres e manuseio de ferramentas perigosas, o trabalho rural infantil nas condições encontradas neste caso pode ser enquadrado, segundo o MPT, entre as piores formas de trabalho infantil, definidas em decreto de 2008, que regulamentou a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Quem tem menos de 18 anos não pode trabalhar nestas atividades nem como aprendiz.

Além das crianças e adolescentes, a fiscalização encontrou cerca de mil pessoas atuando em 25 fazendas sem registro em carteira ou equipamento de proteção individual. Elas não tinham acesso a banheiro e os alojamentos de 19 dos trabalhadores, que não eram da região, estavam em condições ruins.

O número teria sido ainda maior, se não fossem as dificuldades para a fiscalização: “Quando viram que estávamos chegando a uma das fazendas, colocaram um carro para barrar nossa entrada. Então, nós tivemos que pular a cerca e sair correndo atrás dos três ônibus onde estavam alguns trabalhadores. Eu mesmo tive que correr por 300 metros para pegar um deles”, contou o auditor fiscal do trabalho Antônio Valério Morillas Júnior, que acompanhou a operação. Outro problema apontado por Antônio é a falta de funcionários do MTE, que deixa o órgão em uma “situação extremamente precária”. Para fiscalizar as 25 fazendas, eles puderam contar com apenas sete auditores fiscais.

Entidades organizaram audiência com produtores da região para conscientização

Entidades organizaram audiência com produtores da região para conscientização

Para erradicar o trabalho infantil e sanar as questões trabalhistas as entidades têm orientado os produtores a criar cooperativas rurais para, por exemplo, baratear os custos com a compra de equipamentos de proteção individual: “Como as colheitas são de cultura rápida, mas devem ser feitas em momentos diferentes, os produtores podem compartilhar os equipamentos quando estes estiverem ociosos”, explica o auditor. Apesar do trabalho educacional, as fiscalizações devem continuar e a equipe já disse que vai voltar às fazendas no início do próximo ano, quando novas colheitas serão feitas.

 

* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Crianças sem identidade, o trabalho infantil na produção de castanha de caju

Meninos e meninas têm as mãos queimadas por ácido e perdem digitais na quebra da castanha do caju. Mesmo após denúncias, problema persiste no Rio Grande do Norte

Texto e fotos por Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Enviado a João Câmara (RN) – Olhe a ponta do seu dedo. Repare no conjunto minúsculo de linhas que formam sua identidade. Essa combinação é única, um padrão só seu, que não se repete. As crianças que trabalham na quebra da castanha do caju em João Câmara, no interior do Rio Grande do Norte, não têm digitais. A pele das mãos é fininha e a ponta dos dedos, que costumam segurar as castanhas a serem quebradas, é lisa, sem as ranhuras que ficam marcadas a tinta nos documentos de identidade.

O óleo presente na casca da castanha de caju é ácido. Mais conhecido como LCC (Líquido da Castanha de Caju), esse líquido melado que gruda na pele e é difícil de tirar tem em sua composição ácido anacárdico, que corrói a pele, provoca irritações e queimaduras químicas. No vilarejo Amarelão, na zona rural de João Câmara, as castanhas são torradas – além de corroer a pele, o óleo é inflamável – e quebradas em um sistema de produção que envolve famílias inteiras, incluindo as crianças.

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Com a pele cada vez mais lisa, as pontas dos dedos perdem as digitais, e as linhas e traços de identidade se esfacelam (clique nas fotos para ampliar)

O óleo é pegajoso. Basta pegar uma castanha e quebrá-la para ficar com a pele manchada por alguns dias. Nem todas as crianças e os adultos que trabalham no processo sabem que o óleo é ácido. Muitos acham que a mão fica assim machucada por conta da água sanitária utilizada para tirar o preto encardido da mão depois de horas seguidas manuseando e quebrando as castanhas torradas. “Se fosse assim, as pessoas que usam água sanitária para limpeza estariam roubadas! É o óleo LCC que tem uma ação irritante, ele é cáustico, produz lesões e chega a retirar as digitais”, explica o médico Salim Amed Ali, autor de diferentes estudos sobre doenças ocupacionais para a Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), do Ministério do Trabalho e Emprego. A perda da identidade não é permanente. Com o tempo, as digitais voltam se a pessoa se afastar da atividade.

Sobrevivência
O médico fez pesquisas específicas sobre a saúde de trabalhadores de unidades industriais de processamento de castanhas de caju e diz que a atividade pode ser considerada insalubre. No caso em questão, em que a produção é totalmente artesanal e as famílias dependem do trabalho para sobreviver, ele destaca quão contraditória é a situação. “A subsistência está calcada em condições de trabalho inviáveis. Para viver, o sujeito precisa se submeter a condições inaceitáveis e as crianças acabam sacrificadas. Não dá para aceitar isso em pleno século 21”, afirma.

Um menino e uma adolescente se revezando ao redor da mesa. A garota é quem cuida do fogo, alimenta a lata improvisada com cascas de castanha e controla as labaredas espirrando água com uma garrafinha. A fumaça sobe e cobre seu rosto. Um cachorro dorme perto do fogo. Eles estão nessa atividade desde a madrugada, começaram às 3 horas. É preciso começar cedo, no sol do sertão nordestino, não dá para continuar com o calor de meio-dia.

Os trabalhos começam cedo, devido ao calor do sertão nordestino; ao meio-dia, o sol é muito forte para prosseguir

O garoto tem 13 anos e, assim como a irmã, cursou até a quarta série do ensino fundamental mas tem dificuldades para ler e escrever. Largou a escola na quinta série porque teria de viajar uma hora de ônibus para ir até uma que atende alunos mais velhos, localizada na área urbana de João Câmara – trabalhar e estudar ao mesmo tempo já é difícil quando a escola é perto; quando não há escolas perto, impossível. Ele quebra as castanhas com agilidade, seus dedos fininhos seguram, selecionam e escapam das pancadas duras.

São poucas as palavras, ambos trabalham em silêncio e as respostas são curtas. Na mesa vizinha, os mais velhos reclamam da falta de água – a que a prefeitura tem entregue para abastecer as cisternas do bairro é salobra. “Dá dor de barriga e aí a gente tem de comprar água de garrafa, vê se pode”, conta uma mulher de 63 anos, que já passou fome e acha melhor que as crianças trabalhem com castanhas do que colhendo algodão ou roçando pasto para o gado, atividades que exerceu quando criança.

Meninas, meninos, pais, mães e famílias inteiras se misturam para organizar a produção das castanhas

Em outra unidade de produção, uma família adapta o ritmo à existência de um recém-nascido. Uma adolescente, também de 15 anos, se reveza com o marido de 18 anos e sai, de tempos em tempos, para amamentar o bebê. “Eu lavo as mãos bem antes de pegá-lo, para não sujá-lo”, conta a mãe, antes de fazer uma pausa às 4 horas. O trabalho costuma ir até as 11 horas e, à tarde, todos trabalham tirando a pele fininha.

O emprego de crianças na quebra da castanha de caju está incluído na lista de piores formas de trabalho infantil, ao lado de atividades como beneficiamento do fumo, do sisal e da cana-de-açúcar. A situação a que estão submetidas as crianças de João Câmara (RN) não chega a ser novidade. A auditora fiscal do trabalho Marinalva Cardoso Dantas, coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador, tem realizado sucessivas ações de fiscalização, denunciado a situação e cobrado soluções. “Não dá para aceitar que as crianças continuem nessa situação, mas não basta reprimir, é preciso oferecer alternativas”.

A representante do poder público reconhece o problema na região, mas admite: “não conseguimos avançar”

Além de identificar as crianças e reunir informações para relatório a ser entregue ao Conselho Tutelar da cidade, ela também tem procurado cobrar providências por parte da prefeitura sobre a situação das famílias. Os programas sociais são considerados insuficientes pelos moradores, que reclamam da atuação do poder público. “Sabemos do que está acontecendo, mas até agora não conseguimos avançar”, admite Maria Redivan Rodrigues, secretária de Assistência Social e primeira-dama de João Câmara, que promete solucionar o problema em um ano, até setembro de 2014. O Brasil se comprometeu a erradicar as piores formas de trabalho infantil até 2015, mas, mesmo com denúncias, situações com a de João Câmara persistem.

Em 24 de fevereiro de 2012, o promotor Roger de Melo Rodrigues, do Ministério Público Estadual, abriu o Inquérito Civil nº 06.2012.00003777-7 após denúncias. “Ele disse que ia processar as famílias, tentou proibir as pessoas de trabalhar, deixou todo mundo apavorado. Foi muito ruim”, diz Ivoneide Campos, presidente da Associação Comunitária do Amarelão. “A fumaça faz mal, a gente sabe, mas as famílias não querem mudar o método com que sempre trabalharam. E não adianta forçar, tem de transformar em querer, ajudar na busca de alternativas”, defende.

Procurado para comentar a reclamação, o promotor negou, em nota, que sua atuação tem sido meramente repressiva. Ele diz que “os problemas relacionados à queima de castanha, tais como impacto ambiental, danos à saúde dos moradores e trabalho infantil, não têm passado desapercebidos do Ministério Público Estadual” e que “em vez de buscar a repressão de delitos relacionados ao caso, esta Promotoria tem priorizado o diálogo com a respectiva comunidade, já havendo sido realizadas duas reuniões no local com todos os interessados e representantes de órgãos municipais, estaduais e federais, objetivando a construção de um consenso para solucionar o caso”.

O promotor reclama, porém, que embora “busque uma resposta adequada e legítima aos problemas, tem enfrentado alguma resistência relacionada ao costume já enraizado, da parte de algumas famílias locais, de proceder à queima de castanhas ao alvedrio dos respectivos danos decorrentes, o que não impedirá uma atuação isenta e efetiva para a resolução do caso”.

Potiguar
Entre as famílias que dependem do processamento de castanhas de caju para sobreviver estão as de um assentamento localizado na região de índios Potiguar, um dos poucos núcleos remanescentes dessa etnia que no passado povoou o estado inteiro. Os ganhos são mínimos. A castanha crua é comprada de pequenos produtores da região de Serra do Mel. Um saco de 50 kg rende, em média, 10 kg de castanha processada. As famílias contam que ganham de R$ 30 a R$ 100 por semana, vendendo a produção a intermediários que revendem em feiras e mercados de cidades.

Assim que as castanhas estão torradas, as mãos se levantam; pancadas quebram uma noz, depois outra e outra, e outra

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O óleo se esparrama em torno das unhas, pela ponta dos dedos e, quando se vê, as mãos inteiras já estão cheias de ácido

“Tentamos identificar quem lucra com isso, mas é um sistema muito primitivo. As indústrias organizaram a produção e estão processando diretamente as castanhas, não identificamos nenhuma envolvida. Os intermediários são pequenos comerciantes que adquirem o produto diretamente com as famílias”, explica o auditor fiscal José Roberto Moreira da Silva.

Criatividade na busca por soluções para as famílias não falta. Nilson Caetano Bezerra, do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador Aprendiz, por exemplo, sonha em fazer parcerias com as empresas de produção de energia eólica, que fazem multiplicar o número de torres de geração na região, para empregar adolescentes como aprendizes. E em providenciar máquinas para que os adultos não tenham de manusear as castanhas torradas. Experiências com mecanização já aconteceram, mas o descasque manual ainda é o preferido porque a taxa de desperdício é menor.

Mesmo que já exista formas de produção mecanizadas, ainda há preferência pelas técnicas manuais, que seriam mais produtivas

Em fevereiro, o juiz Arnaldo José Duarte do Amaral, titular da 9ª Vara do Trabalho de João Pessoa, visitou a comunidade e também encontrou as crianças trabalhando na produção de castanhas. Ele escreveu um artigo sobre a questão e, desde então, tenta articular soluções e envolver mais interessados em resolver o problema. “Quando estive lá como juiz, me perguntavam se ia prender alguém. Não é esse o papel do judiciário, o objetivo não é prender ninguém, é achar solução”, diz, defendendo a formação de cooperativas e mecanismos de economia solidária como o melhor caminho para erradicar o trabalho infantil e melhorar a condição de trabalho dos adultos. “A gente tenta corrigir essas questões há séculos, sem sucesso. Não bastam ações repressivas, que vão além de tentar punir.”

Leia também: Violência crua, um flagrante de trabalho infantil em matadouro

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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“Crianças são mais suscetíveis a infecções”

Especialista alerta para o risco à saúde dos trabalhadores de matadouros que funcionam em condições inadequadas e diz que situação é especialmente delicada para crianças

Texto e fotos por Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Atenção: texto e imagens fortes a seguir 

Enviado a Lagoa de Pedras (RN) – Isabel Cristina Lopes Dias é bióloga e veterinária, e estuda as condições de saúde e trabalho em abatedouros nordestinos. Ela é especialista em Saúde, Meio Ambiente e Segurança e em Engenharia Ambiental, além de mestre em Saúde e Ambiente. Em artigos científicos e estudos específicos, Isabel alerta para a frequente ocorrência de zoonoses envolvendo matadouros, e cobra políticas públicas e ações para minimizar o problema. Procurada pela reportagem, a especialista comentou a situação flagrada em Lagoa de Pedras, no Rio Grande do Norte, destacando a gravidade de crianças estarem submetidas às condições encontradas, e detalhou os riscos e doenças a que estão sujeitos todos os envolvidos.

O fato de crianças estarem envolvidas na prática é um agravante? Em termos de sistema imunológico, elas estão mais sujeitas a infecções?
O envolvimento de crianças precocemente no mundo do trabalho (mesmo que não tenha tantos perigos associados) é por si só um grave problema social. No caso específico de abatedouros, onde o trabalho é considerado insalubre, exaustivo e com vários perigos associados, a situação torna-se mais delicada ainda. Dependendo da faixa etária da criança envolvida, os riscos podem ser maiores ou menores, mas, de modo geral, nesse ambiente de trabalho as crianças estão mais vulneráveis tanto às doenças quanto aos acidentes, pois precisam realizar tarefas e manusear instrumentos desconexos de sua capacidade física e psicológica, justamente em uma fase em que são mais imaturas e ingênuas. A curiosidade natural das crianças também pode levá-las a se envolverem mais facilmente em acidentes ou a contraírem doenças. Quanto ao sistema imunológico, as crianças são mais suscetíveis, tanto às doenças mais comuns como gripes e resfriados quanto às doenças infecciosas, pois é nessa fase que a imunidade está sendo construída. Por isso, para fortalecer o desenvolvimento de suas defesas naturais, as crianças devem realizar, durante esse período, hábitos considerados saudáveis, como dormir e se alimentar bem, estudar e brincar, conviver em ambientes tranquilos e livres de agentes estressores, o contrário do que é verificado em abatedouros. Além dessas implicações mais imediatas (impacto no desenvolvimento do sistema imune) o estresse, o barulho e a repetição, típicos do trabalho em abatedouros, podem também ter consequências graves no desenvolvimento geral da criança, principalmente o psíquico.

Lagoa de pedras

Crianças e adultos trabalham com chinelos ou descalços, caminhando sobre sangue e fezes. Fotos: Daniel Santini

Crianças de 12 anos trabalham com facas afiadas realizando tarefas inadequadas para capacidade física e psicológica. Fotos: Daniel Santini

Crianças de 12 anos trabalham com facas afiadas realizando tarefas inadequadas para capacidade física e psicológica

As pessoas trabalhavam descalças e/ou com chinelos abertos. Trabalhadores caminhavam sobre sangue, fluidos internos e até sobre o conteúdo do intestino dos animais recém-abatidos. Quais problemas de saúde podem acontecer em função dessa prática?
Os principais problemas de saúde dizem respeito às zoonoses, que são doenças transmitidas entre os animais e o homem. Um agente zoonótico pode ser uma bactéria, um vírus, um fungo ou outro agente de doença transmissível, existindo mais de 200 tipos de zoonoses transmissíveis ao homem, segundo dados atuais da Organização Mundial de Saúde. Em abatedouros clandestinos é comum que os animais sejam abatidos sem passar por nenhum tipo de inspeção “ante-mortem”, permitindo que animais doentes sejam encaminhados para o abate com o risco de contaminar os trabalhadores e toda produção com doenças contagiosas, causando danos à saúde e à economia. A desproteção desses trabalhadores e o contato direto e/ou indireto com animais e/ou suas secreções são situações críticas de exposição e transmissão de microrganismos zoonóticos.

Todos, adultos e crianças, manuseavam instrumentos altamente cortantes (machadinhas, facas e cutelos) sem nenhuma proteção para evitar cortes e afins. Muitos relatam acidentes constantes e têm marcas de cortes abertos. Que doenças podem ser transmitidas em função desse comportamento?
Em virtude da exposição a diversos perigos, a atuação na indústria de carnes é considerada internacionalmente como trabalho perigoso. Inúmeros trabalhadores no mundo inteiro se ferem e vários morrem todos os anos devido a acidentes nos locais de trabalho. Problemas ocupacionais importantes estão relacionados a lesões de membros superiores, casos em que a manipulação de material perfuro-cortante (utilizado na maioria das etapas de abate) é o agente de risco de acidente de maior relevância, sendo a faca e afins instrumentos responsáveis por parcela significativa dos acidentes de trabalho registrados nesta ocupação. Como medida preventiva, deveria ser adotado o uso do equipamento de proteção individual – EPI, pois, conforme dispõe a Norma Regulamentadora – 6, do Ministério do Trabalho e Emprego, a empresa é obrigada a fornecer aos empregados, gratuitamente, EPI adequado ao risco, em perfeito estado de conservação e funcionamento. Apesar da obrigatoriedade, essa situação não se verifica nos locais de abate.

Trabalhador descalço no matadouro. Problemas de saúde e acidentes de trabalho são constantes entre adultos e crianças do setor

Trabalhador descalço no matadouro. Problemas de saúde e acidentes de trabalho são constantes entre adultos e crianças do setor

Trabalhadores com lesões e feridas nas mãos devem ser afastados da função e evitar o contato direto com a carne, uma vez que isso pode facilitar tanto a contaminação da carne que está sendo manipulada como a infecção do trabalhador, pela entrada de micro-organismos zoonóticos através das lesões. Alguns problemas relacionados com agentes biológicos zoonóticos podem ser lesões de pele, pelo antraz e vaccinia; febres, ocasionadas por brucelose e Chlamydia spp. no abate de frangos; ocorrência de doenças entéricas como a salmonelose – que além do risco de infecção aguda, também pode causar artrite reativa pós-infecção –, campilobacteriose e yersinose; toxoplasmose ocasionada pelo contato direto com Toxoplasma gondii; tuberculose ocasionada pelo Mycobacterium bovis por inalação de aerossóis ou acometimento cutâneo – contato direto com carcaças contaminadas; surtos de leptospirose e vírus Nipah (essas doenças podem afetar trabalhadores que entram em contato com grandes volumes de urina durante o trabalho nas indústrias de carne).

As diferentes partes dos bois recém-abatidos ficam espalhadas pelo matadouro, que é aberto e sem nenhuma proteção. As fezes armazenadas no intestino são derramadas a não mais do que um metro da carne que será cortada e distribuída para consumo. Qual o risco de contaminação?
A legislação que regulamenta o funcionamento desses estabelecimentos, quer seja a nível federal, estadual ou municipal, requer infraestrutura e procedimentos higiênico-sanitários mínimos. Como exemplos de padrão mínimo exigido para funcionamento, primeiramente, o estabelecimento deve ser afastado dos limites das vias públicas; as vias e pátios internos devem ser pavimentados; pisos e paredes convenientemente impermeabilizados com material adequado, construídos de modo a facilitar a coleta e afastamento das águas residuárias; mesas de aço inoxidável; rede de abastecimento de água e, quando necessário, tratamento de água; câmaras frias segundo a capacidade do estabelecimento, para armazenamento adequado da carne; carros de transporte da carne com sistema de refrigeração, dentre outros. Quando essas medidas mínimas não são respeitadas, o risco de contaminação da carne que está sendo manipulada é elevado, revestindo-se de importância em saúde pública, com perigos para a população consumidora em geral.

Homem abre e limpa intestino ao lado de onde garoto corta carne do boi

Homem abre e limpa intestino ao lado de onde garoto corta carne do boi

Após serem cortadas e separadas, patas dos boi são transportadas em carrinho de mão

Após serem cortadas e separadas, patas dos boi são transportadas em carrinho de mão

Leia também: Violência crua, um flagrante de trabalho infantil em matadouros

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Orçamento de meio milhão para novo matadouro está parado

Prefeito promete providências para acabar com trabalho infantil e alega que licenciamento atrasou novo matadouro municipal. Órgão responsável diz que não há registros de pedido 

Texto e fotos por Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Atenção: texto e imagens fortes a seguir

Enviado a Lagoa de Pedras (RN) – Desde 21 de janeiro de 2013, a Prefeitura de Lagoa de Pedras, cidade do interior do Rio Grande do Norte onde crianças trabalham no matadouro municipal, conta com um orçamento de R$ 502,125,00 para a construção de um novo abatedouro graças a convênio com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. O projeto prevê a construção de instalações sanitárias adequadas, estação de tratamento de água e capacidade para 60 abates por semana (atualmente, segundo o informado pela Prefeitura ao Governo Federal, em média 42 animais são mortos todos os domingos). O dinheiro, no entanto, está parado.

O prefeito Raniere Cesar Amâncio da Silva (DEM) afirma que a demora deve-se ao processo de licenciamento ambiental, que, segundo ele, está sendo feito em conjunto com o Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Norte (Emater). A reportagem entrou em contato com o departamento responsável pelo licenciamento de abatedouros do Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte, que informou que não há registro de entrada de pedido de licenciamento para a obra, nem diretamente, nem em parceria com a Emater.

Questionado sobre o número de protocolo do pedido de licenciamento, o prefeito afirmou que, por estar em Natal, não tinha essa informação, mas garantiu que o pedido foi feito e que o novo matadouro ficará pronto até setembro de 2014. “O matadouro atual está realmente em péssimas condições, e temos de reconhecer que houve um erro [em relação ao trabalho infantil]. Vamos tomar providências imediatamente. Já aconteceu outras vezes, proibimos o pessoal, mas qualquer vacilo que a administração dá e os meninos voltam. É igual criança de rua, a gente tira, mas eles voltam”, diz o prefeito, que afirma que, além de reprimir, a prefeitura oferece programas sociais, com psicólogos e assistentes sociais.

Meninos de 12 anos trabalham cortando bois no matadouro municipal

Meninos de 12 anos trabalham cortando bois no matadouro municipal. Fotos: Daniel Santini

Sangue, carne e fezes espalhados colocam em risco saúde de crianças e adultos

Sangue, carne e fezes espalhados colocam em risco saúde de crianças e adultos

“Temos de tentar o máximo de soluções para acabar com isso. A gente orienta, mas o povo é difícil. A dificuldade que nós temos como gestores de municípios pequenos, de forma geral, são os pais. Eles proíbem os filhos de frequentar os programas que executamos”, afirma.

Problema regional
O emprego de crianças e adolescentes em matadouros está longe de ser exclusividade de Lagoa de Pedras. A auditora fiscal Marinalva Cardoso Dantas, que comandou a ação na cidade, já fiscalizou e registrou trabalho infantil em matadouros dos municípios de Acari, Bom Jesus, Caicó, Cruzeta, Currais Novos, Itaú, Jardim do Seridó, João Câmara, Lagoa Nova, Nova Cruz, São Paulo do Potengi, Tangará, Touros e Vera Cruz, entre outros. A estratégia de cobrar prefeitos, e, em alguns casos, em parceria com o Ministério Público Estadual, até responsabilizá-los judicialmente com abertura de processos, tem dado resultados.

Além de visitar Lagoa de Pedra, a reportagem esteve também no abatedouro de Brejinho (RN), onde ouviu relatos sobre o emprego de crianças e adolescentes na atividade, e no município de João Câmara (RN), um dos flagrados com trabalho infantil em matadouros em 2008.

Apesar do aviso de que é proibida a presença de crianças, feirantes relataram que os meninos costumam ficar no terreno ao lado do abatedouro de Brejinho (RN), esperando para trabalhar nos restos dos bois

Apesar do aviso de que é proibida a presença de crianças, feirantes relataram que os meninos costumam ficar no terreno ao lado do abatedouro de Brejinho (RN), esperando para trabalhar nos restos dos bois

O "fateiro" Reginaldo Raimundo da Silva ao lado dos escombros onde antes funcionava o antigo abatedouro municipal de João Câmara (RN), desativado após denúncia. Foto: Daniel Santini

O “fateiro” Reginaldo Raimundo da Silva ao lado dos escombros onde antes funcionava o antigo abatedouro municipal de João Câmara (RN), desativado após denúncia. Foto: Daniel Santini

Neste último, após a denúncia, o abatedouro público irregular foi desativado e destruído. No matadouro atual de João Câmara (RN), construído longe do centro urbano, são os adultos que trabalham como “fateiros”. “As condições mudaram muito, usamos equipamentos e é tudo muito mais limpo”, conta Reginaldo Raimundo da Silva, 36 anos, ao lado dos escombros em que funcionava o antigo matadouro. Ele conta que trabalha limpando tripas de bois na cidade desde os 10 anos de idade. “Agora estou recebendo um salário e comecei a cursar o ensino médio. Quero ser professor”, sonha.

Leia também: Violência crua, um flagrante de trabalho infantil em matadouro

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Violência crua, um flagrante de trabalho infantil em matadouro

Crianças de 12 anos trabalham com facas afiadas no corte de bois no interior do Rio Grande do Norte. Banalização da violência afeta desenvolvimento, alertam especialistas

Texto e fotos por Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Atenção: texto e imagens fortes a seguir

Enviado a Lagoa de Pedras (RN) – O boi branco está amarrado pela perna esquerda, com uma corda atada a uma cerca de madeira. São doze homens dentro do matadouro municipal de Lagoa de Pedras, município do interior do Rio Grande do Norte com população estimada em 7.372 pessoas e rebanho de 5.100 bovinos. Duas crianças esperam, trepadas na cerca. O boi hesita. Um dos homens levanta uma marreta e, sem pestanejar, desce ela com toda força na direção da testa do animal.

Uma fração de segundo, o boi desvia a cabeça, a pancada passa a milímetros do seu olho direito. O lugar cheira a sangue e merda. Um dos meninos sorri. Os homens gritam, o boi gira, desesperado, preso à corda. A segunda marretada é precisa. O boi branco cai, tendo espasmos, tentando coices inúteis, morre devagar. O corpo é arrastado para fora, outro boi é trazido para dentro do galpão aberto, sem paredes, sem nenhuma estrutura. Homens jogam água no chão de cimento onde ficou sangue, há mofo na mureta que limita o espaço, o ferro que segura as telhas está todo enferrujado.

Do lado de fora, onde há mais espaço para trabalhar, outros dois meninos de 12 anos com facas pontiagudas e afiadas estão debruçados sobre outro boi recém-morto. Praticamente um em cada três habitantes de Lagoa de Pedras tem menos de 15 anos. Em 2010, a mortalidade infantil do município era de 29,6 para cada mil nascidos vivos, média bem acima da nacional (19,7) e da estadual (16,7). A atividade em matadouros está entre as Piores Formas de Trabalho Infantil estabelecidas pela Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Assim como os adultos, as duas crianças trabalham de chinelos, ficando descalças em diversos momentos para andar sobre a carne, com o cuidado de se equilibrar para não fazer os órgãos internos romperem.

Menino de 12 anos corta e limpa boi momentos após abate em matadouro de Lagoa de Pedras. Fotos: Daniel Santini

Menino de 12 anos corta e limpa boi momentos após abate em matadouro de Lagoa de Pedras. Fotos: Daniel Santini

Lagoa de Pedras, no RIo Grande do Norte

Pele do animal é arrancada com uma faca afiada com uma série de puxões que requerem habilidade

Lagoa de Pedras, no Rio Grande do Norte

Para a limpeza das tripas, garoto tem de praticamente entrar no boi. A carne ainda está quente e os músculos sofrem breves espasmos, mesmo com o animal já morto

Apenas um dos trabalhadores usa botas de plástico. Não há nenhum outro equipamento de proteção. Os meninos hesitam ao verem a chegada da equipe de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. A auditora fiscal do trabalho Marinalva Cardoso Dantas, coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador, para ao lado dos dois. Ao seu lado, a auditora fiscal Virna Soraya Damasceno olha com dificuldade para a cena crua, vermelha. A carne, mesmo com o animal morto, ainda se mexe. São breves espasmos dos músculos, agora já descobertos, sem pele. O pai de uma das crianças, depois de cumprimentar a todos educadamente, dá um grito para um dos meninos. “Vai ficar aí parado? Não tem de ter vergonha, você está trabalhando, não na rua roubando!”.

O mais magricelo volta a se debruçar e trabalhar, e fica praticamente dentro da barriga do boi. O outro ainda titubeia por alguns momentos, antes de abaixar e ajudar o colega. Nenhum dos outros garotos que estavam esperando o outro boi ser morto se aproxima enquanto a fiscalização está presente.

Responsabilidade
A auditora Marinalva Dantas registra a situação com uma câmara fotográfica, identifica as crianças e conversa com elas. As informações servirão de base para um relatório a ser entregue ao Conselho Tutelar da cidade e para a cobrança de providências da Prefeitura em relação às condições de trabalho no matadouro municipal. A estratégia de autuar e responsabilizar o poder público é a mesma utilizada em ações em outros matadouros públicos e em feiras livres em outras das cidades da caatinga onde o emprego de crianças em tarefas pesadas insalubres é cotidiano, comum.

Em um contexto grave de pobreza e miséria, responsabilizar as famílias pura e simplesmente não basta, explica a auditora. Adultos e crianças trabalham nos abatedouros por comida. Os meninos costumam receber, em troca da limpeza do “fato” do boi, como são chamadas as entranhas do animal, miúdos e tripas de menor valor.

Crianças recebem miúdos do boi como pagamento pelo trabalho

Crianças recebem miúdos do boi como pagamento pelo trabalho

Garoto que trabalhou na limpeza leva pagamento para casa

Garoto que trabalhou na limpeza leva pagamento para casa

Também é difícil responsabilizar quem se beneficia economicamente do sistema estabelecido. Em Lagoa de Pedras, os bois costumam ser levados ao abatedouro por pequenos produtores locais e são abatidos no domingo, na véspera da feira livre local, onde a carne é vendida, muitas vezes, também por meninos. A cidade é uma das mais carentes do país. Com Índice de Desenvolvimento Humano Municipal de 0.553 (em um critério que vai de 0 a 1), Lagoa de Pedras ocupava em 2010 a 5.150ª posição entre os 5.565 municípios brasileiros.

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Banalização
O trabalho infantil é tido como algo normal na região. Fiscalizar a prática não é tarefa fácil e há até quem hostilize os auditores. É fácil ouvir os adultos defenderem, mesmo dentro dos matadouros, que criança tem de trabalhar “para não virar vagabundo”, “para não se envolver com droga” e “para aprender uma profissão”, só para citar alguns dos argumentos repetidos a esmo.

A psicóloga infantil Christiane Sanches, do Centro de Referência às Vítimas da Violência, do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, alerta, no entanto, que crianças vítimas de trabalho infantil estão mais sujeitas a problemas, em especial as que se deparam com realidades cruas como a do abate de animais. “Quando a criança se depara diretamente com uma situação de extrema violência, ela rompe uma fase de desenvolvimento. A fantasia é importante, é uma forma de a criança se relacionar com a realidade”, explica, ressaltando que brincar e imaginar são atividades fundamentais para a formação de adultos responsáveis, capazes de manter boas relações sociais, relações afetivas e independência.

Garoto trabalha com os avós na barraca em que carne crua é vendida na feira livre de Brejinho (RN)

Garoto trabalha com os avós na barraca em que carne crua é vendida na feira livre de Brejinho (RN)

É fácil ver crianças trabalhando nas barracas açougue na feira de Monte Alegre (RN)

É fácil ver crianças trabalhando no setor onde estão as barracas que servem de açougue na feira de Monte Alegre (RN)

Menino manuseia faca no corte de carne de frango, também em Monte Alegre (RN)

Menino manuseia faca no corte de carne de frango, também em Monte Alegre (RN)

O risco de acidentes é maior para crianças em função da força necessária para os cortes

O risco de acidentes é maior para crianças em função da força necessária para os cortes

Nos abatedouros, a banalização da morte é marcada por episódios de crueldade e o trabalho envolve ações violentas. Entre as atividades que os garotos cumprem estão arrancar toda a pele do animal recém-morto puxando aos poucos e separando o couro com breves golpes e cortar a cabeça e as patas. A noção do que é vida e morte se dilui na mesma medida que o sangue se espalha pelas mãos, pés e pernas desnudas de moleques magrelos. A auditora fiscal Marinalva Dantas conta que em uma das ações flagrou crianças “brincando” de espetar um boi ainda vivo com lâminas.

Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento, a psicóloga Christiane Sanches explica que a frieza e falta de sensibilidade podem ser mecanismos de defesa de crianças que tiveram contato com eventos de extrema agressividade. “A família tem de ter a preocupação em relação a uma profissão, mas dentro de uma faixa de desenvolvimento adequada. É preciso respeitar etapas. O trabalho infantil é uma ruptura do que se espera de determinadas fases. Quanto menor a faixa etária, mais grave a situação”, alerta, destacando que o fato de a atividade ser considerada normal pela comunidade agrava a situação. “Ao fazer o corte, a criança está seguindo o modelo da família, está exercendo um papel dentro da sociedade. Se não aceitar, está excluída, o que provoca desamparo emocional. Não trabalhar vira uma vergonha”, diz.

Estômago aberto, sangue e fezes
Em um canto do abatedouro, um dos cachorros que ronda o local aproxima-se de um pedaço de carne crua sangrando. Com uma machadinha na mão, um dos adultos que trabalha quebrando os ossos da base do peito de um boi morto para ao perceber o avanço, gira o instrumento e dá um golpe com o cabo. O animal dá um ganido, late e se afasta rápido, a tempo de evitar a pancada. A dois passos, outro trabalhador carrega o intestino de um boi.

Ele faz furos com o facão para o ar sair e a pele não romper ao ser erguida, leva com cuidado o órgão até o fundo do terreno e, com um golpe seco, abre o intestino. A merda escorre em um canal aberto junto com sangue e outros dejetos. Um tanto se espalha no chão, o homem caminha descalço sobre a sujeira. O cheiro é insuportável. A menos de dois passos, os garotos trabalham no boi, terminando de separar os pedaços de carne. “A gente se corta às vezes. Eu já fiquei com o pé todo em carne viva”, conta um dos trabalhadores adultos, puxando e ajeitando um pedaço de carne com a faca. “Trabalho com isso desde que eu tinha 9 anos. Aqui todo mundo é assim. E trabalho para viver. Melhor do que roubar, né?”, conta.

Cachorros circulam o matadouro, que é todo aberto. Sangue e fezes escorrem em canais

Cachorros circulam o matadouro, que é todo aberto. Sangue e fezes escorrem em canais

Trabalhadores usam chinelos ou trabalham descalços, caminhando sobre resíduos

Trabalhadores usam chinelos ou trabalham descalços, caminhando sobre resíduos

Por si só, as condições de trabalho em abatedouros e empresas de processamento de carne já são consideradas problemáticas. Em 2011, de acordo com dados do Ministério da Previdência Social (MPAS), ocorreram 19.453 acidentes de trabalho e 32 mortes envolvendo o setor. Os problemas levaram o Ministério do Trabalho e Emprego a estabelecer em abril de 2013 a Norma Regulamentadora nº 36, que, entre outras medidas, determina adequação e organização de postos de trabalho.

Em Lagoa de Pedra, crianças e adultos que trabalham no matadouro ostentam cortes abertos, marcas de acidentes leves ou profundos. “Trabalhadores com lesões e feridas nas mãos devem ser afastados da função e evitar o contato direto com a carne, uma vez que isso pode facilitar tanto a contaminação da carne que está sendo manipulada como a infecção do trabalhador”, explica a bióloga e veterinária Isabel Cristina Lopes Dias, mestre em Saúde e Ambiente.

“A desproteção desses trabalhadores e o contato direto e/ou indireto com animais e/ou suas secreções são situações críticas de exposição e transmissão de microrganismos zoonóticos. As crianças estão mais vulneráveis tanto às doenças quanto aos acidentes, pois precisam realizar tarefas e manusear instrumentos desconexos de sua capacidade física e psicológica, justamente em uma fase em que são mais imaturas e ingênuas.”

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* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Combate ao trabalho infantil passa por estruturação de políticas públicas

Para cumprir as metas de erradicação, o Brasil precisa não apenas contar com fiscalização, mas investir em serviços públicos e promover com eficiência sistema de garantia de direitos

Por Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Para evitar que crianças e adolescentes ingressem de modo precoce no mundo do trabalho – e na vida adulta – não basta somente contar com ações que encontrem, verifiquem e afastem meninos e meninas vítimas desse tipo de exploração. Em geral, fiscalizações trabalhistas, promovidas por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), têm, no que diz respeito à tarefa de erradicar todas as formas de trabalho infantil, alcance limitado, porque agem mais no sentido de reprimir a prática do que preveni-la e garantir que não haja sua reincidência.

Se o Brasil almeja cumprir o compromisso de eliminar as piores formas de trabalho infantil até 2016 – e, até 2020, todas as formas de trabalho infantil –, deve contar também com um conjunto de políticas públicas que integrem um sistema que garanta efetivamente os direitos de meninas e meninos. Esse é, pelo menos, um dos principais entendimentos de autoridades e agentes da sociedade civil que lidam com o tema, ouvidos pela Repórter Brasil. Medidas como o fortalecimento do papel da educação e da saúde públicas são alguns exemplos.

Garoto busca restos em lixão, atividade considerada entre as piores formas de trabalho infantil. Foto: MPT-MA

Garoto busca restos em lixão, atividade considerada uma das piores formas de trabalho infantil. Foto: MPT-MA

O fato de o país ter reduzido substancialmente o número absoluto de crianças e adolescentes trabalhando nos últimos 12 anos demonstra, por um lado, considerável avanço na questão. Segundo o último Censo, 3,4 milhões de crianças e adolescentes de 10 a 17 anos estavam em serviço em 2010 – número que indica uma redução de 13,4% desde o ano de 2000. No entanto, esse ritmo é insuficiente para que o Brasil cumpra as metas estabelecidas para eliminar o trabalho infantil dentro do seu território, mesmo se levado em conta o fato de o MTE ter intensificado a quantidade de fiscalizações a partir de 2012.

De acordo com dados do Ministério do Trabalho, entre 2007 e 2011 a média anual de ações fiscais exclusivamente voltadas à busca de focos de jovens trabalhando foi de 2,7 mil em todo o Brasil; em 2012, foram 7.392 ações do tipo, mas uma quantidade menor de meninos e meninas foi afastada de atividades remuneradas. Em 2007, as inspeções encontravam, em média, seis pessoas com menos de 18 anos a cada incursão em empresas ou logradouros públicos. Agora, a média é de 0,9 – o que significa que, em parte das vistorias, não são encontrados indícios de exploração infanto-juvenil.

Para Isa Maria de Oliveira, secretaria-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), é insuficiente jogar a responsabilidade do combate ao trabalho infantil exclusivamente sobre as fiscalizações do MTE. “Não basta que as inspeções retirem as crianças e adolescentes do trabalho, é preciso articular um conjunto de políticas públicas para evitar que essas situações se repitam”, explica.

O posicionamento dela, entretanto, leva em conta um cenário mais complexo. Todos os casos de flagrantes de crianças e adolescentes em atividades de trabalho seguem um procedimento adicional para a orientação das vítimas. Ao encontrarem meninos e meninas em serviço, as ações de fiscalização os encaminham para outros órgãos responsáveis. Conselhos tutelares, procuradorias do Ministério Público do Trabalho (MPT), órgãos governamentais de assistência social e mesmo organizações do terceiro setor recebem esses jovens. O procedimento é referência para a comunidade internacional e varia conforme as características de cada região do país, conforme indica o auditor Luiz Henrique Ramos, chefe da divisão de fiscalização de trabalho infantil do MTE. “Fazemos uma entrevista para verificar as especificidades de cada caso e encaminhamos os jovens para os órgãos responsáveis”, detalha.

Principal região de aplicação das políticas de combate à pobreza, o Nordeste apresentou os melhores índices de redução do trabalho infantil entre 2000 e 2012 Foto: Leonardo Sakamoto

Para evitar que crianças sejam aliciadas pelo mundo do trabalho, deve-se fortalecer o sistema de garantia de direitos. Foto: Leonardo Sakamoto

“A fiscalização é eficiente, e referência. Deixa a desejar pela falta de recursos, como acontece com os sistemas de garantias”, acrescenta um dos coordenadores do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil (Ipec, na sigla em inglês) do escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, Antônio Carlos de Mello. Segundo o representante da OIT, a fiscalização cumpre o papel que deve cumprir no combate ao trabalho infantil, e a única ressalva diz respeito à falta de recursos, ponto do qual os auditores que lidam com o tema também reclamam.

É consenso, entre os fiscais do MTE, que faltam equipamentos e mais pessoal para as fiscalizações trabalhistas – sobram relatos do tipo entre os profissionais da área e o concurso para 100 novos agentes na área é apontado como insuficiente para suprir o déficit do serviço, segundo o sindicato da classe, o Sinait (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho).

A analogia entre os problemas de estrutura para os agentes de fiscalização do trabalho e as políticas públicas desenvolvidas com o objetivo de manter um sistema de garantias no Brasil para o combate do trabalho infantil faz parte de como a OIT entende a situação, segundo Antônio Carlos. “Existe um interesse internacional nos tipos de políticas públicas desenvolvidos no Brasil, que partem da atenuação da pobreza. O processo vem acontecendo, mas faltam recursos físicos e humanos”, afirma. “Enquanto essa estruturação não acontecer, vai ser difícil erradicar o trabalho infantil.”

Educação e ciclo da pobreza
“As políticas públicas devem atuar sobre o conjunto de questões que são relevantes e impactam a exploração de trabalho infantil”, pontua Isa Maria de Oliveira, do FNPETI. “O não sucesso [de alguns jovens] na escola é uma questão a se analisar. A escola não responde às necessidades daquelas crianças que podem enfrentar problemas familiares”, exemplifica. Segundo ela, há situações em que pais e mães, ao não observarem o bom desempenho escolar dos filhos, forçam a entrada dos meninos e meninas no mundo do trabalho. Nesses casos, os adultos, se não encontram resultados esperados dos filhos, não veem necessidade de a criança perder tempo com o estudo quando já poderiam estar trabalhando.

Menino participa de programa educativa contra o trabalho infantil. Foto: Secretaria Municipal de Educação de Alto Paraguai

Menino participa de programa educativo contra o trabalho infantil. Foto: Secretaria Municipal de Educação de Alto Paraguai (MT)

Uma leitura errada desse tipo de situação seria a de entender que os pais são culpados pelo fato de os filhos serem aliciados pelo mundo do trabalho. A representante do FNPETI entende, porém, que o problema está associado ao próprio modelo de funcionamento da educação no Brasil. Ela recomenda, por exemplo, uma escola em período integral, que assegure o acesso ao lazer de crianças e adolescentes e desenvolva um tipo de coordenação pedagógica que proporcione o pleno desenvolvimento na infância.

A fragilidade das escolas municipais e estaduais pode colaborar para que crianças e adolescentes estudem e também trabalhem, casos que evidenciam a pouca capacidade do sistema educacional de auxiliar no combate ao trabalho infantil. “Muitos jovens, por conta disso, já chegam à idade adulta com uma defasagem educacional”, pondera Antônio Carlos, da OIT. “Para a comunidade mais vulnerável, que de fato vai procurar trabalho por necessidade, essas dificuldades vão perpetuando o ciclo de pobreza. Por isso, deve haver o reconhecimento dessas deficiências por parte do Estado”, completa.

De um lado, o papel das políticas públicas deve ser o de proteger crianças e adolescentes que estejam mais vulneráveis ao aliciamento para o trabalho infantil por meio da garantia de direitos, com a estruturação de serviços de educação, saúde e transporte, em quantidade e com qualidade. De outro, o de articular redes que fortaleçam os vínculos comunitários e familiares dessas pessoas em situação de vulnerabilidade. É, de modo geral, o que entendem os representantes das entidades que lidam com o tema. O coordenador do Ipec aponta que certas medidas já vêm sendo tomadas, como a implementação de algumas escolas de período integral pelo país.

Para a secretária executiva do FNPETI, está claro que a erradicação do trabalho infantil passa pela reestruturação do próprio Estado. Crianças e adolescentes que trabalham não conseguem se desenvolver na plenitude e, portanto, têm dificuldade em almejar um emprego melhor que o dos pais e alcançar uma vida mais confortável. “Não há desenvolvimento sustentável onde há trabalho infantil. O Brasil, inclusive, tem carência de profissionais qualificados”, observa, em referência às dificuldades proporcionadas. “A permanência do trabalho infantil perpetua a pobreza e a desigualdade no Brasil. Não rompe e contribui para a manutenção do ciclo de miséria”, conclui.

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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