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Mais de 250 mil crianças e adolescentes realizam trabalhos domésticos no país, situação “aceita” pela sociedade e de difícil fiscalização. Quase 94% desse total são meninas

Por Igor Ojeda, da Repórter Brasil

Todos os dias, quando Cristina* acordava, o mundo ainda estava escuro. Era rotina: inclusive aos sábados e domingos, a garota de 12 anos levantava às quatro e meia da madrugada. Não dava tempo de ficar rolando na cama. Tinha de se aprontar logo e ir ao restaurante da tia ajudar com a arrumação. Só três horas depois, por volta das sete e meia da manhã, é que tomava banho para ir à escola.

Na hora do almoço, voltava ao restaurante, onde ficava até as quatro e meia da tarde limpando, ajudando no caixa, fazendo entrega. Mas seu expediente não terminava aí. Retornava à casa da tia e levava mais duas horas limpando, lavando, passando. Depois, jantava, fazia a lição de casa e ia para a cama. No dia seguinte, às quatro e meia, o despertador tocava…

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em setembro de 2011 haviam pouco mais de 250 mil crianças e adolescentes exercendo trabalhos domésticos por todo o Brasil: 67 mil na faixa 10 a 14 anos, 190 mil na faixa de 15 a 17 anos. Apesar de as trabalhadoras desse setor terem alcançado uma vitória histórica recentemente, com a entrada em vigor, no dia 3, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que garante os mesmos direitos trabalhistas de outros segmentos, o trabalho infantil doméstico ainda carece de visibilidade: especialistas destacam que esse é um problema que, apesar de grave, permanece oculto.

O trabalho infantil doméstico é uma das atividades incluídas na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP) criada pelo decreto 6.481, assinado em junho de 2008 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e baseado na Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Constam da relação 89 atividades, com suas descrições e consequências para a saúde de crianças e adolescentes que as desempenham. “Por ter sido incluído na Lista TIP, o trabalho doméstico não pode ser exercido por pessoas que não completaram 18 anos”, explica Isa Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).

Cristina, que aos 12 anos começou a trabalhar de doméstica. Foto: divulgação/Cendhec

Cristina, que aos 12 anos começou a trabalhar de doméstica. Foto: divulgação/Cendhec

Mundo escuro
… com o mundo igual de escuro, Cristina acordava, e o martírio se repetia. Alguns meses antes, a pequena pernambucana morava com a mãe, o padrasto e a irmã de dois anos no bairro da Mangueira, no Recife – tinha mais quatro irmãos por parte de pai. Apenas estudava. A mãe, uma moça de seus trinta anos, era doméstica e sustentava as duas filhas com a ajuda do marido, que fazia coleta de sangue numa clínica na cidade.

Foi então que começou a ter problemas de coluna, o que a impediu de continuar trabalhando. Os gastos foram ficando cada vez mais apertados quando veio a “solução”: a irmã do pai de Cristina estava precisando de alguém para ajudá-la em casa e no restaurante. Mandou a filha com mala e tudo para o novo lar, não muito longe dali, também na Mangueira…

Isa Oliveira cita os dados do Censo 2010 para ilustrar a gravidade da situação. Em todo o Brasil, das estimadas 3,4 milhões de crianças e adolescentes trabalhando, 7,5% realizam serviços domésticos. A região Centro-Oeste é a de pior incidência em números proporcionais (9%), seguida das regiões Norte (8,5%), Nordeste (8%), Sudeste (7%) e Sul (6%). Ela chama a atenção, no entanto, para a evidente subnotificação de casos.

“Esses dados não expressam toda a dimensão do problema porque o Censo não coleta informações sobre os afazeres domésticos, ou seja, o trabalho infantil doméstico nas próprias casas das crianças. Há uma dificuldade em relação a esse registro, porque na maioria das vezes não é identificado como trabalho, e sim como ajuda. Como as pesquisas são por autodeclaração, muitas vezes o adulto informa que as crianças não trabalham, porque o conceito de trabalho está ligado à remuneração. Porém, no caso de trabalho infantil doméstico, isso não é determinante, não há essa relação direta”, esclarece a secretária-executiva do FNPETI.

Rotina
… Cristina ia caminhando da casa da tia até o restaurante, no Jardim São Paulo, e do restaurante para a casa da tia. Andava também até a escola. Aos sábados, como não precisava estudar, trabalhava o dia todo, até as nove e meia da noite. Aos domingos, cumpria expediente até o meio-dia. Eram poucas as horas livres. Aproveitava para visitar a mãe, mas no mesmo dia à noite tinha de voltar. Afinal, na segunda-feira, às quatro e meia da madrugada… era hora de pegar no batente.

Por todo esse serviço, a menina recebia R$ 20 mensais. Não reclamava. A mãe tampouco, pois pensava que a irmã do pai de sua filha comprava tudo que ela precisava, como roupas novas. Cristina dava metade do que recebia à mãe, e ficava com a outra metade. Quando precisava de mais dinheiro, pedia ao pai. Para completar, a tia e o marido a tratavam mal diariamente. “Me xingavam de vagabunda porque eu não fazia o trabalho direito. Diziam que como estavam pagando, era para eu fazer direito”, conta. A pequena não aguentava mais…

De acordo com a Pnad 2011, do total das crianças e adolescentes no trabalho infantil doméstico no Brasil, 93,8% são meninas. Chama a atenção também o fato de a grande maioria destas serem negras. Tal perfil, no entanto, não surpreende se levadas em conta as características do trabalho doméstico no país, independentemente da idade de quem o exerce. Na realidade, especialistas apontam que grande parte das domésticas adultas começou a trabalhar antes dos 18 anos. Paulo Lago, do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), de Recife, explica que a desigualdade social e a miséria são as primeiras causas dessa situação. “A mãe prefere entregar a filha para trabalhar numa casa de família a vê-la morrer de fome.”

Isa Oliveira destaca que tais motivações estão ligadas a outros fatores, como o pouco acesso das crianças à educação de qualidade, principalmente nos pequenos municípios da área rural, e, também, a baixa escolarização dos integrantes adultos das famílias, que não percebem a educação dos filhos como direito e oportunidade. Além disso, há uma forte naturalização do trabalho infantil doméstico no país. “Existe uma espécie de camuflagem da exploração nesses casos. No Nordeste e no Norte, é muito comum crianças serem levadas do interior para casas de famílias nas capitais. A exploração do trabalho fica oculta sob o manto da proteção: ‘a menina veio estudar, tem casa, comida’ etc. É difícil até que a própria família e as crianças compreendam a situação de exploração”, diz Isa.

Violência
… um dia, o marido da tia, um policial, levantou a sandália para Cristina. Mas ela tinha perdido o medo. “Ele ia me bater, mas comecei a xingá-lo, dei um chute nele e fui embora”, lembra. Foi para a casa do avô. A menina continuou indo ao restaurante, mas uma semana depois não apareceu mais. A irmã do seu pai, furiosa, jogou todas suas roupas na rua. Não importava: depois de quase um ano, Cristina estava livre.

Ou quase. No novo lar, continuou a fazer os serviços de casa, para ajudar a esposa do avô. Mas lá a situação era melhor. Era tratada muito bem e recebia R$ 100 por semana. Acordava mais tarde e ia direto para a escola. Mesmo assim, quando voltava na hora do almoço, trabalhava bastante, pois não era “dispensada” antes de lavar a louça do jantar…

Wanderlino Nogueira Neto recebe o Prêmio Direitos Humanos 2011, do governo federal, na categoria Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

Wanderlino Nogueira Neto recebe o Prêmio Direitos Humanos 2011, do governo federal, na categoria Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

Durante o Seminário Internacional Infância e Comunicação, realizado entre 6 e 8 de março deste ano em Brasília (DF), Wanderlino Nogueira Neto, representante brasileiro do Comitê dos Direitos da Criança da ONU, afirmou que em relação ao Nordeste é possível falar até em escravidão nos casos de trabalho doméstico infantil, por causa das condições absurdas a que as crianças são submetidas.

“No Nordeste, infelizmente ainda é comum escravidão no trabalho doméstico, inclusive com castigos físicos”, disse ele, que foi procurador-geral de Justiça da Bahia. “A situação afeta até mesmo familiares. Estamos falando de escravidão mesmo e entre as vítimas estão crianças, incluindo irmãos e irmãs mais novas. É uma situação em que espancamentos são comuns.”

A presidenta da Federação Nacional das Empregadas Domésticas (Fenatrad), a baiana Creuza Maria de Oliveira, sabe bem disso, já que sentiu na pele tais violações desde que começou a trabalhar como doméstica, quando tinha apenas dez anos. “Eu fui vítima de espancamento, de assédio moral, abuso sexual, ato libidinoso… a gente sabe que isso acontece, que no Nordeste as crianças e adolescentes domésticas comem o resto da comida da casa, para não jogar no lixo.” Creuza frisa que as consequências do trabalho infantil doméstico são gravíssimas. A começar pela saúde de quem tem menos de 18 anos, que realizam um tipo de trabalho incompatível com o que seus corpos ainda em desenvolvimento suportam e lidam diariamente com produtos químicos utilizados na limpeza das casas. “Além disso, há o abuso sexual e o assédio moral. A autoestima das meninas fica destruída. Elas crescem com complexo de inferioridade”, alerta. Isa Oliveira, do FNPETI, lembra que a fadiga causada pelo trabalho e jornada exaustivos comprometem não apenas a frequência escolar como também o desenvolvimento cognitivo das crianças.

Educação e saúde
… quando estava na casa da tia, Cristina sempre chegava com sono à escola. Invariavelmente perdia as duas primeiras aulas. No fim do ano, ficou de recuperação em três matérias. Mesmo que tenha trabalhado como doméstica por um período curto se comparado com a média, sua saúde não foi poupada. Por trabalhar muito em pé, seja na residência da irmã do pai ou no restaurante, hoje ela sente fortes dores no joelho. “Cheguei a ir ao médico e ele disse que eu preciso operar.”

Cerca de dois meses depois de ir para a casa do avô, uma vizinha entregou a sua mãe um folheto do projeto “Do trabalho infantil à participação”, do Cendhec, que reúne crianças e adolescentes entre 13 e 16 anos, moradores de comunidades de baixa renda do Recife e com histórico de trabalho infantil, para um processo de formação cujo objetivo é inseri-los nos espaços de formulação de políticas públicas relacionadas aos direitos de meninos e meninas. Cristina preencheu o formulário, fez a inscrição e foi selecionada. Voltou para a casa da mãe e parou de trabalhar…

Paulo Lago, do Cendhec, ressalta um aspecto delicado do problema do trabalho infantil doméstico: muitas vezes, é a própria mãe que põe a filha mais velha para tomar conta dos filhos mais novos enquanto sai para trabalhar – isso quando não chamam afilhadas ou filhas de vizinhos. Por isso, ele defende que é papel do Estado não somente tirar as crianças das situações de trabalho infantil, mas também atuar pelo fortalecimento das famílias de baixa renda, como sua inserção em programas sociais e a construção de creches, para que os pais tenham onde deixar os filhos durante o dia. Creuza, da Fenatrad, destaca que, além das creches, é preciso pensar em escolas de tempo integral, onde crianças e adolescentes possam, além de estudar, realizar outras atividades, como esportes e cursos de línguas.

Creuza Maria de Oliveira, presidenta da Fenatrad. Foto: Valter Campanato/ABr

Creuza Maria de Oliveira, presidenta da Fenatrad. Foto: Valter Campanato/ABr

Outro grande obstáculo à luta contra o trabalho infantil doméstico, além da precariedade de políticas públicas preventivas, é a extrema dificuldade de fiscalização das situações de vulnerabilidade. “Esse tipo de violação acontece no interior do lar, que é inviolável segundo a Constituição. Por isso é importante que órgãos como Conselhos Tutelares, Ministério Público do Trabalho denunciem esses casos e busquem alternativas e maior divulgação do problema”, diz Isa Oliveira, do FNPETI, cuja campanha contra o trabalho infantil de junho deste ano terá como mote justamente o trabalho doméstico infantil.

Direitos
… No projeto do Cendhec desde junho do ano passado, para onde vai todas as quartas-feiras, Cristina aprendeu, na teoria, as consequências do trabalho infantil. Participou de formações, por exemplo, sobre direitos de crianças e adolescentes, atuação dos Conselhos Tutelares e violência doméstica e sexual. Também esteve em oficinas sobre comunicação, para poder exercitar uma visão críticas sobre os meios de informação.

Aos 14 anos, a menina vê sua vida melhorar. A mãe, após um tratamento bem-sucedido, parou de sentir dores na coluna e voltou a trabalhar – faz serviços gerais em uma creche. Cristina não precisa mais ajudá-la. Hoje, a única obrigação é ir à escola.

* nome alterado para preservar a identidade da entrevistada
Imagem de abertura: Reprodução/Campanha FNPETI contra trabalho infantil doméstico

Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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17 thoughts on “Pequenas domésticas, a violação invisível

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  2. Maravilhosa a reportagem. É isso mesmo que ocorre. Crianças pobres tiradas de seus lares para trabalhar. Quem as vê percebe o olhar triste. Estão nos shoppings chiques, nos clubes, ao lado de carrinhos de bebês, cuidando de outra criança. E ninguém diz nada. A gente fica pensando que aquela pessoa chique que a contrata não deve refletir muito sobre a situação indefesa daquela criança. Não pensa como ela deve sentir saudades da família, dos amigos, da rua onde morava. Que bom que este assunto está sendo falado. Lugar de criança é em casa, na escola, acompanhada pela família, por seu grupo social que vai lhe dar a segurança do amor, do afeto para crescer e enfrentar o mundo. Sugestão a vocês visitem os shoppings ricos aos domingos, os clubes, os supermercados e verão uma menina negra de olhar perdido cuidando de uma outra criança. Em geral, estão vestidas de branco. Como se a gente não soubesse os porquês dela se encontrar nesta condição.
    Parabéns a todos que contribuem para desmascarar esta situação de trabalho aviltante.

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  4. Um país que não se preocupa com o futuro de suas crianças compromete o desenvolvimento da nação, neglicencia nossas leis e sinaliza que está longe promover igualdade e justiça para todos. Moro onde?

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  6. Sem entenderem as diferenças de cada um,pessoas que se sentem vitoriosas porque “receberam” diploma de “doutores(as)”lavam suas mãos e dizem:se eu consegui, você também consegue.Na nossa maioria falta sensibilidade e compromisso com a realidade que nos assola e traspassa pré-conceitossss.

  7. Só faltou o principal:
    Onde e como denunciar o trabalho escravo? (de preferência anônimamente para evitar represálias).
    Esta é a coisa mais difícil neste País.

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  10. Vejo diariamente o mesmo ciclo se repetindo, pais que tiveram sua infância e adolescência destruídas fazendo o mesmo com seus filhos, me pergunto o que fazer para acabar com este ciclo tão complexo e prejudicial á todos. Políticas de assistência social e educação não surtem o efeito esperado, muitas vezes oferecemos ajuda para superar o problema mas nos frustramos sem adesão deste público que não vê uma saída no fim do túnel, tornando a repetir e repetir e repetir…

  11. eu achei bem legal essa reportagem pois, este pais ganha medalalha de ouro em relação a isso….
    o bom desta reportagem e de alguns comentarios é que alem do trabalho infantil abrange tambem o racismo da sociedade moderna

  12. Reportagem importante.
    Pena sua baixa divulgação assim tb como à quase nenhuma importancia dada ao trabalho infantil, mormente, doméstico que é de difícil identificação, quase impossível denunciá-lo e se isso ocorrer, a indiferença da sociedade será patente. Ou será que a sociedade age pateticamente?
    Já está mais do que tarde para acabarmos com essa prática.
    Sabidamente, a arma a ser usada é a educação, condições de acesso à essa educação, com boas escolas, bons professores que, bem remunerados e bem preparados, poderão transferir toda a riqueza do conhecimeto e com a garra que lhes são peculiares.
    Para combater o trabalho infantil e, principalmente, doméstico, gladiadores com poderes mágicos deverão ser convocados, mas certamente com o apoio de políticas públicas, compromisso de todos (governos, sociedade, entidades civis e religiosas e o cidadão comum)

  13. Observem o seguinte:- Como o trabalho escravo ainda não tem erradicação no nosso país, os dirigentes aproveitaram para criar órgãos fiscalizadores do trabalho com tantas siglas que até mesmo eles se acham confusos, não sabem quem é quem e na confusão se perdem na responsabilidade de cada um:- OIT,PETI, ANTD, AHTD, PNTDJ, CONATRAE, CONAETI,FENEPETI, MTE, etc.,todos CRIADOS para proporcionar a dignidade no trabalho sem escravidão, e quem paga? O POVO. E como isto a lei Áurea está longe de acontecer, e a vergonha já é mundialmente conhecida,e para que ela não se torne ainda maior, é proibido crescer, é proibido saber, é proibido proibir, para não aumentar ainda mais a indignação e a discussão com os países divergentes, e o Brasil se torna uma barbaria.

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