Meia infância http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br Desafios do combate ao trabalho infanto-juvenil Thu, 20 Apr 2017 13:16:04 +0000 pt-BR hourly 1 Ex-prefeito de Lábrea é responsabilizado por trabalho escravo infantil http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/ex-prefeito-de-labrea-e-responsabilizado-por-trabalho-escravo-infantil/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/ex-prefeito-de-labrea-e-responsabilizado-por-trabalho-escravo-infantil/#comments Tue, 29 Apr 2014 19:56:47 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1844 Dois meninos de 11 anos estão entre os 21 resgatados trabalhando para ex-prefeito Gean Campos de Barros e seu genro, Oscar da Costa Gadelha

Por Daniel Santini

O ex-prefeito de Lábrea, Gean Campos de Barros (PMDB) e seu genro, Oscar da Costa Gadelha, foram responsabilizados pela exploração de 21 pessoas em condições análogas a de escravos na produção de castanha-do-pará em Lábrea, no Amazonas. Entre os resgatados estavam dois adolescentes e quatro crianças, incluindo dois meninos de 11 anos que, assim como os demais, carregavam sacos cheios de castanhas em trilhas na mata e manuseavam facões longos, conhecidos como terçados, para abertura dos ouriços, os frutos da castanha. A reportagem tentou entrar em contato com os empresários para ouvi-los sobre o flagrante, mas não conseguiu localizá-los.

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Menino de 11 anos com a camisa do Flamengo carregava saco de 25 kg de castanhas descalço na mata quando foi encontrado pela fiscalização. Adultos chegam a transportar cargas de mais de 50 kg. Fotos: Divulgação/MTE

A libertação aconteceu em operação conjunta do Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal, realizada entre 16 a 28 de março em castanhal localizado dentro da Reserva Extrativista do Médio Purus, acessível a partir da comunidade ribeirinha de Lusitânia, nas margens do rio Purus. “O que mais nos chamou a atenção foi a questão das crianças. Vimos meninos carregando sacos de 25 kg dentro da floresta, andando até quatro quilômetros descalças”, conta o auditor André Roston, coordenador do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do MTE. “Para ajudar, um policial pegou o saco e começou a carregar, mas ele não aguentou chegar até o final. É um trabalho muito pesado e as crianças estavam submetidas ao sistema de exploração estabelecido.”

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Garoto de 11 anos manuseia facão no barco e na abertura de ouriço de castanha-do-pará

Os facões, mais longos que o antebraço de alguns dos meninos, como é possível visualizar na foto ao lado, eram utilizados para abrir os duros frutos da castanheira e extrair as sementes. Nenhum dos trabalhadores utilizava proteção e, segundo a fiscalização, um dos garotos de 11 anos estava com o dedo indicador cortado, ferimento decorrente de acidente enquanto exercia a atividade. Tanto o “transporte, carga ou descarga manual de pesos” acima de 20 kg para atividades raras ou acima de 11 kg para atividades frequentes, quanto a “utilização de instrumentos ou ferramentas perfurocortantes, sem proteção adequada capaz de controlar o risco” estão entre as piores formas de trabalho infantil, conforme estipulado pela lei número 6.481/2008, com base na Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

À equipe de fiscalização, em depoimento, Oscar Gadelha confirmou o uso de trabalho infantil e defendeu que o emprego de crianças e adolescentes na atividade é “uma certa forma é até uma maneira de educar”.

Reserva extrativista e o sistema de barracão
A exploração de trabalho escravo infantil aconteceu em uma unidade de conservação federal, a Reserva Extrativista do Médio Purus. A área de preservação foi criada como resultado de intensa mobilização social, processo detalhado na obra “Memorial da Luta pela Reserva Extrativista do Médio Purus em Lábrea, AM: Registro da mobilização social, organização comunitária e conquista da cidadania na Amazônia””, e garante às comunidades ribeirinhas o direito de desenvolver atividades extrativistas na região.

Local em que o resgate aconteceu. Clique na imagem para navegar pelo mapa

Local em que o resgate aconteceu. Clique na imagem para navegar pelo mapa

Os castanhais, em questão, porém, eram tratados como propriedade privada, e o grupo econômico formado por Oscar Gadelha e o ex-prefeito Gean Barros determinava exclusividade na extração. Além de ser encaminhado ao MPT e à PF, que acompanharam a ação, o relatório da fiscalização foi enviado também ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Não é a primeira vez que Gean Barros se posiciona contra as áreas de proteção. Durante sua gestão, o político chegou a tentar impedir fiscalizações de crimes ambientais ocorridos nas reservas extrativistas, e foi processado pelo MPF por ter, em 9 e 10 de março de 2010, incitado “uma manifestação popular na praça central do município, com o objetivo de impedir a fiscalização do ICMBio e expulsar os fiscais do município”.

O controle da exploração comercial na reserva federal era feito por Oscar Gadelha, e o sistema era financiado e estruturado pelo ex-prefeito, o que configurou a formação de grupo econômico familiar, segundo a fiscalização. O coordenador da ação explica que a escravidão foi caracterizada por diferentes fatores, incluindo o uso do sistema de barracão, mecanismo clássico de exploração de trabalhadores, ribeirinhos e comunidades indígenas, ainda comum em frentes de trabalho e áreas isoladas na Amazônia. No controle das redes de abastecimento, os regatões (comerciantes de grandes barcos) e senhores de barranco como são conhecidos os que monopolizam o comércio, vendem itens básicos com sobrepreço e compram a preços irrisórios, criando relações de dependência, se beneficiando de dívidas e impondo restrições de locomoção.

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Sacos de castanha coletados na floresta pelos trabalhadores resgatados

No caso específico, Gadelha fornecia desde itens básicos como açúcar, café, óleo vegetal, sabão, arroz, carne em conserva, leite em pó, bolacha, até itens essenciais para o trabalho, como gasolina e diesel para o transporte por barcos, além de botas, terçados e lanternas. Na mata, ele cobrava cerca de 20% a mais do que o preço que os mesmos itens eram comercializados em Lábrea.Os trabalhadores só recebiam após o fim da safra, e dependiam do barracão para sobreviver.

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Trabalhadores recebiam R$ 1,5 por quilo de castanhas coletadas

Os bens adquiridos em um armazém eram descontados aos ganhos com produção, e, sem controle ou opção, alguns recebiam R$ 100 ou R$ 200 por todo trabalho realizado durante a safra. Há também depoimentos de trabalhadores que terminaram o período endividados e tiveram de trabalhar na safra seguinte para pagar o barracão. O emprego das crianças pelos pais está relacionado à preocupação das famílias em tentar aumentar os ganhos. “Estamos falando de um sistema de barracão com um barracão físico. Um paiol para armazenas as castanhas, além do armazém e da casa grande. É um sistema clássico”, explica o auditor André Roston.

Nesse contexto, mesmo os programas sociais têm limitações de alcance. Na área urbana de Lábrea, há denúncias de que comércios locais retêm cartões de benefícios como Bolsa Família e Bolsa Floresta, com as respectivas senhas a título de garantia de dívidas de ribeirinhos e índios.

Condições degradantes
Além dos 21 trabalhadores resgatados, a fiscalização também constatou que outros 16, incluindo mais crianças e adolescentes, foram submetidos anteriormente às mesmas condições. Eles não foram libertados porque não estavam trabalhando no período do resgate, mas também receberam seus direitos trabalhistas. Ao todo, o valor líquido das rescisões pagas ao grupo é de R$ 58.978,42.

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Um dos grupos usava como alojamento abrigo improvisado erguido sobre o rio, sem paredes ou proteção contra o vento. Trabalhadores dormiam em redes

Os trabalhadores viviam e trabalhavam em condições de degradação humana. Entre os resgatados durante a fiscalização, parte vivia em um abrigo improvisado, parte em um barco apertado e os demais em casas nas comunidades ribeirinhas vizinhas. Sem estrutura mínima, os alojamentos inadequados não garantiam nem privacidade nem proteção contra chuvas ou temporais. Nas frentes de trabalho, algumas distantes a mais de uma hora e meia de caminhada, não havia estrutura ou abrigo na mata, nem abastecimento de água potável, banheiros ou itens básicos de higiene, como papel higiênico. Os rios eram utilizados tanto como fonte de água quanto como espaço para lavar a louça e tomar banho. Sem banheiros ou fossas, as necessidades eram feitas na mata ou nas águas. Na fiscalização, a equipe encontrou a comida de todo o grupo, peixe com farinha, armazenada em um balde que já havia servido para transportar tinta. Sem pratos ou talheres, as pessoas comiam direto do balde com as mãos.

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Balde com peixe e farinha onde era armazenada a comida de toda uma frente de trabalho. Sem talheres ou pratos, coletadores comiam com as mãos direto do recipiente

Além da degradação humana, também foram constatados riscos de segurança onde os adultos, adolescentes e crianças ficavam. Entre eles, a ameaça de o ouriço, o pesado e duro fruto da castanheira, se desprender da árvore e atingir pessoas. Nem capacetes, nem malhas metálicas para o manuseio de facas ou qualquer outro tipo de equipamento de proteção eram fornecidos pelos empregadores.

Além de André Roston, que coordenou a ação junto com a também auditora fiscal Márcia Ferreira Murakami, da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Rondônia, também participaram os auditores João Ricardo Dias Teixeira, Júlio César Cardoso da Silveira, Marco Aurélio Peres; o procurador Rogério Rodrigues de Freitas da Procuradoria Regional do Trabalho de Bauru; e os policiais federais Camila Pinheiro Simmer e Fabiano Ignacio de Oliveira, da 11ª Delegacia; Júlio de Melo Arnaut, da 2ª Delegacia; Ruan Cleber Torres Cruz, 4ª Delegacia; Wandercleysson de A. Souzada da 1ª Delegacia; e Willian Pascoal Pereira da 14ª Delegacia.

* Matéria produzida com apoio da Fundação Rosa Luxemburg

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Lugar de gente feliz? Pão de Açúcar e a exploração do trabalho adolescente http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/lugar-de-gente-feliz-pao-de-acucar-e-a-exploracao-do-trabalho-adolescente/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/lugar-de-gente-feliz-pao-de-acucar-e-a-exploracao-do-trabalho-adolescente/#comments Tue, 17 Dec 2013 12:05:40 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1813 Justiça do Trabalho determina que unidade da rede de supermercados em Ribeirão Preto (SP) deixe de praticar irregularidades trabalhistas, entre as quais a submissão de jovens aprendizes a desvios de função

Por Igor Ojeda

O supermercado Pão de Açúcar é “lugar de gente feliz”, diz o comercial na TV. Clientes felizes e ecologicamente sustentáveis encontram, em qualquer loja da rede, funcionários igualmente felizes e ecologicamente sustentáveis sempre dispostos a atendê-los.

De acordo com a juíza Francieli Pissoli, da 5ª Vara do Trabalho de Ribeirão Preto (SP), no entanto, a realidade é um pouco diferente. Em decisão de novembro deste ano, ela concedeu liminar favorável ao Ministério Público do Trabalho (MPT) determinando ao Grupo Pão de Açúcar (GPA) que deixe de praticar uma série de irregularidades trabalhistas, entre estas, a submissão de jovens aprendizes a desvios de função e de seus funcionários em geral a jornadas excessivas.

As violações foram flagradas por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) na loja do grupo localizada na avenida João Fiúsa, na Zona Sul de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Segundo a fiscalização, a gerência da unidade obrigava os adolescentes contratados pelo programa de aprendizagem a trabalhar como caixas e empacotadores, em períodos noturnos e em regime de compensação de jornada, condições não permitidas pela legislação brasileira. Além disso, a empresa não cumpria o número mínimo de 5% de aprendizes em relação ao total do quadro de empregados.

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Adolescentes eram obrigados a trabalhar como caixas e empacotadores, em períodos noturnos e em regime de compensação de jornada. Foto: Divulgação/Pão de Açúcar

De acordo com a fiscalização do MTE, além de desrespeitar as violações dos direitos dos adolescentes aprendizes, o Pão de Açúcar Fiúsa, como a unidade era conhecida, não cumpria com algumas obrigações trabalhistas dos funcionários adultos. Extensão de jornadas acima do permitido, ausência de intervalos regulares e descanso semanal, e falta de registro de horário de entrada e saída dos empregados foram algumas das práticas flagradas.

Em nota enviada à reportagem, o Grupo Pão de Açúcar afirma que cumpre a legislação trabalhista e “repudia qualquer situação de violação aos seus preceitos”. Sobre os adolescentes, a rede garante que seu programa direcionado a aprendizes possui diretrizes “orientadas pelas leis vigentes”, o objetivo de “possibilitar a entrada desses jovens no mercado de trabalho” e a premissa do “desenvolvimento e aperfeiçoamento profissional dos participantes da iniciativa”.

A Ação Civil Pública (ACP) havia sido ajuizada pelo procurador Henrique Lima Correia, da Procuradoria do Trabalho do Município de Ribeirão Preto, após o Pão de Açúcar ter se negado a firmar um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) proposto por Correia. “As denúncias de irregularidades chegaram a nós através do site da Procuradoria. Chamei o Pão de Açúcar para se manifestar sobre elas. Se fossem verdadeiras, que firmássemos um acordo extrajudicial, um TAC. A empresa negou que houvesse irregularidades e não aceitou firmar o TAC. Então requisitei uma fiscalização junto aos fiscais do trabalho. Esta foi feita e foram constatadas várias irregularidades”, explica o procurador à Repórter Brasil.

Uma vez flagradas as violações, e como a rede de supermercados já havia se recusado a firmar qualquer acordo extrajudicial, Correia decidiu entrar com a ação solicitando, por meio de antecipação de tutela, que a empresa imediatamente cessasse de realizar tais práticas irregulares. “Em razão das graves irregularidades, além de pedir para que fosse regularizado tudo isso, solicitei à Justiça a condenação, por danos morais coletivos, ao pagamento de R$ 400 mil”, esclarece o procurador. Caso o Judiciário condene o Pão de Açúcar, esse valor será revertido ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

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A inspeção dos auditores do MTE rendeu à empresa 11 autuações. Foto: Divulgação/Pão de Açúcar

A inspeção à unidade do Pão de Açúcar na Zona Sul de Ribeirão Preto, realizada pela Gerência Regional do Trabalho e Emprego (GRTE) do município, teve como resultado 11 autos de infração. Foram encontrados jovens aprendizes em jornadas abusivas e trabalhando em horários noturnos – depois das 22 horas. Além disso, os auditores verificaram que adolescentes estavam incluídos em banco de horas, que controlava a realização de horas-extras e a concessão de folga compensatória. “Registre-se que a situação ora autuada contraria o disposto no artigo 432, caput, da CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], que assim dispõe: ‘A duração do trabalho do aprendiz não excederá de seis horas diárias, sendo vedadas a prorrogação e a compensação de jornada’”, argumenta a ação ajuizada pelo procurador Henrique Lima Correia.

Trabalho infanto-juvenil
A psicóloga Fabrícia Rodrigues Amorim Aride, estudiosa da questão do trabalho adolescente, lamenta que o caso do Pão de Açúcar não seja isolado. Segundo ela, há no Brasil uma cultura de valorização do labor de crianças e adolescentes como um meio de afastá-los da ociosidade e da possível delinquência, e, quando vinculado às tradições familiares de organização econômica, fazê-los aprender um ofício e auxiliar na mão de obra familiar. “Em contrapartida, pode ocorrer a exploração da mão de obra infanto-juvenil, legitimada pelo governo, que muitas vezes é a única forma de sustento formal da família”, pondera.

De acordo com a psicóloga, apesar de trazer um retorno imediato, o trabalho nessa idade pode ter consequências de longo prazo. “Por exemplo, abandono escolar e diminuição da interação social devido ao cansaço físico, afastamento de amigos que passam a ver esse jovem de uma forma diferente (e ele também pode passar a se ver dessa maneira) e, entre outras questões, inserção precoce nas angústias características dos trabalhadores.” Além disso, segundo ela, a entrada dos jovens no mercado de trabalho geralmente não traz a possibilidade de ascensão social, perpetuando, desse modo, a pobreza e a desigualdade social. “Infelizmente, pode-se dizer que os jovens de baixa renda sofrem mais impactos negativos do que os jovens de classes mais privilegiadas, visto que aos segundos são dadas possibilidades de aprendizagens bem diferenciadas, como por exemplo, cursos, intercâmbios, viagens, enquanto aos primeiros, as atividades profissionalizantes que funcionam sob a égide ‘mente vazia é oficina do Diabo’”, analisa Fabrícia.

Aprendizagem
De acordo com a legislação brasileira, não é permitido empregar jovens de idade inferior a 18 anos em trabalhos noturnos, perigosos ou insalubres. Adolescentes de 16 anos ou menos não podem ser contratados para nenhum trabalho, salvo na condição de aprendiz, permitida a partir dos 14 anos. Segundo o MTE, “aprendiz é o empregado com um contrato de trabalho especial e com direitos trabalhistas e previdenciários garantidos. Parte do seu tempo de trabalho é dedicada a um curso de aprendizagem profissional e outra é dedicada a aprender e praticar no local de trabalho aquilo que foi ensinado nesse curso”.

A aprendizagem foi estabelecida oficialmente no Brasil pela Lei 10.097/2000 e regulamentada pelo Decreto 5.598/2005. Lei e decreto determinam que qualquer empresa de médio e grande porte é obrigada a contratar adolescentes e jovens entre 14 e 24 anos, cujo contrato terá, no máximo, dois anos de duração. Ao mesmo tempo, estes devem ser matriculados em cursos de aprendizagem ministrados por instituições qualificadoras reconhecidas, que serão as responsáveis pela certificação – por exemplo, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), escolas técnicas e entidades sem fins lucrativos que tenha como objetivo a educação profissional. A carga horária máxima é de seis horas diárias, podendo chegar a oito caso estejam incluídos os períodos dedicados ao aprendizado teórico. “A aprendizagem deve ter caráter mais pedagógico do que de trabalho. As funções que os adolescentes estavam ocupando na loja do Pão de Açúcar de Ribeirão Preto não eram condizentes com a aprendizagem”, explica o procurador do trabalho responsável pela ação.

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Segundo o próprio grupo, rede possui quase 2 mil pontos de venda e emprega mais de 155 mil funcionários. Foto: Viakenny/Flickr

Para Fabrícia, a regulamentação da aprendizagem pelo governo federal foi uma iniciativa importante, que propiciou a legalização e o reconhecimento dos direitos dos adolescentes, uma vez que, segundo ela, o trabalho é uma atividade estruturante da vida e tem importância fundamental na construção da identidade do jovem. “Entretanto, não há uma lei que defina o que de fato seja o trabalho educativo e imponha limites a ele. Observamos, por exemplo, jovens universitários trabalhando em organizações sem ligação nenhuma com sua futura formação profissional, e acobertando um problema ainda mais amplo: a ausência de contratações efetivas pelas instituições. Portanto, essa é uma questão que não se restringe apenas aos jovens do programa”, alerta.

Pão de Açúcar
De acordo com sua própria página na internet, o Grupo Pão de Açúcar – empresa do Grupo Casino, de origem francesa – é um dos líderes mundiais no varejo de alimentos. É a maior companhia da América Latina no setor, com quase 2 mil pontos de venda e mais de 155 mil funcionários. Controla ainda estabelecimentos como Extra, Casas Bahia e Ponto Frio. Em 2012, registrou lucro recorde: R$ 1,1 bilhão, crescimento de 60,7% em relação ao ano anterior. Em 2013, os primeiros nove meses já renderam R$ 709 milhões, alta de 14,8% em comparação ao mesmo período do ano passado.

No tópico “Missão, visão e pilares” de seu site, o grupo chama seus trabalhadores de “nossa gente”, que são, de acordo com o site, “profissionais com excelência técnica, bem preparados e motivados para assumir desafios, riscos e atitudes inovadoras. Pessoas que gostem de servir, que valorizem o respeito em suas relações internas com o cliente, fornecedores e parceiros”. Entre os princípios da empresa, figuram, entre outros, a garantia de que “nossa gente é gente que faz a diferença” e o compromisso “com o crescimento de uma sociedade justa, humana e saudável”. Sobre o Instituto Pão de Açúcar, voltado à responsabilidade social, o GPA diz que “acredita e sempre trabalhou com foco no potencial humano, acreditando que, quando estimulada, sua força latente se revela e dá novos sentidos a vida”.

Já a unidade Fiúsa, de Ribeirão Preto, foi inaugurada em novembro de 2009. De acordo com informações da imprensa da época, foi a segunda do grupo na cidade e o primeiro “supermercado Verde” local: foram investidos R$ 11 milhões para que todas as etapas da implementação da loja fossem concebidas sob critérios de responsabilidade socioambiental, segundo a empresa.

Nota do Pão de Açúcar:

“O GPA esclarece que cumpre a legislação trabalhista e que repudia qualquer situação de violação aos seus preceitos. A companhia mantém um programa de desenvolvimento e capacitação de Jovens Aprendizes, cujas diretrizes são orientadas pelas leis vigentes e tem como objetivo possibilitar a entrada desses jovens no mercado de trabalho e como premissa o desenvolvimento e aperfeiçoamento profissional dos participantes da iniciativa. Sobre a liminar citada, a companhia esclarece que não foi notificada oficialmente e que apresentará sua posição em juízo assim que tal fato ocorrer.”

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Do Oiapoque ao Chuí: o trabalho infantil nas fronteiras http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/do-oiapoque-ao-chui-o-trabalho-infantil-nas-fronteiras/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/do-oiapoque-ao-chui-o-trabalho-infantil-nas-fronteiras/#comments Thu, 28 Nov 2013 21:41:42 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1792 Fiscalização falha dificulta combate ao trabalho infantil nos municípios de fronteira dos extremos Norte e Sul do Brasil

Por Stefano Wrobleski, para a Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Mais de 4 mil quilômetros separam o município amapaense de Oiapoque, no extremo Norte do Brasil, do Chuí, município gaúcho no extremo Sul. Os dois estão nos limites territoriais brasileiros: enquanto no Oiapoque um rio separa a população da Guiana Francesa, os habitantes do Chuí estão a uma rua de distância da vizinha uruguaia, que tem quase o mesmo nome: Chuy. Além de serem pontos extremos do país, o trabalho infantil e a falta de fiscalização – sempre mais eficiente do lado de lá da fronteira – são realidades que aproximam locais tão distantes.

No Chuí, uma força-tarefa realizada no início de novembro pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) detectou diversas irregularidades trabalhistas, além de crianças e adolescentes trabalhando com o empacotamento dos produtos comprados pelos clientes nos supermercados da cidade. O Conselho Tutelar do município contabilizou, na época, que quase todos os cerca de 50 jovens trabalhando no Chuí “faziam caixinha”, como é conhecida a atividade pela qual os consumidores pagam com esmolas. A presidenta do Conselho Tutelar, Sonia Caetano, explica que há uma naturalização do trabalho infantil: “As pessoas acham que é melhor estar trabalhando do que fazendo outra coisa, porque pensam que as crianças estariam nas ruas se não fosse isso”. Ela conta do caso de um homem que buscava emprego na cidade acompanhado de seu filho, de oito anos: “O dono [de um supermercado] disse a ele: ‘pra ti eu não tenho, mas tu deixas o teu filho aqui que ele pode fazer caixinha’”.

Força-tarefa do MPT e do MTE em reunião com conselheiras tutelares de Chuí (Foto: MPT)

Força-tarefa do MPT e do MTE em reunião com conselheiras tutelares de Chuí (Foto: MPT)

Alexandre Marin Ragagnin, procurador do MPT que acompanhou a operação, é categórico: “No lado brasileiro não tem fiscalização”. A unidade do MTE mais próxima fica a 200 quilômetros, o que dificulta os trabalhos. Ele explica que, como é mais difícil trabalhar no lado uruguaio, as crianças e adolescentes vêm para o Brasil. Alexandre conta também que encontrou, na operação, um menino de 12 anos que trabalhava desde os nove embalando compras em um supermercado: “Quando a fiscalização chegou, ele entrou na loja e saiu com uma compra, se misturando aos demais consumidores, o que não nos permitiu alcançá-lo”. Outra dificuldade é que, por ser uma fronteira seca, muitas vezes os pais das crianças flagradas são uruguaios, o que impede a ação dos fiscais.

A solução foi notificar cerca de 70 das principais lojas do município, que tem cerca de 5 mil habitantes no lado brasileiro, para que não empreguem crianças e adolescentes em seus estabelecimentos. Em dezembro, o MPT e o MTE devem voltar ao Chuí para uma audiência pública que conscientize empresários e o poder público local dos problemas e infrações legais quanto ao trabalho infantil.

Quatro mil quilômetros ao norte, o Ministério Público do Estado do Amapá (MP-AP) é uma das entidades que promove a Caravana Contra o Trabalho Infantil no Estado. O pequeno número de municípios do Amapá (16) tornou possível a realização da atividade em todos eles. Com oficinas, palestras e audiências públicas, o objetivo é unir esforços das esferas federal, estadual e municipal contra o problema, além de conscientizar as instituições governamentais competentes.

No Oiapoque, no entanto, isso não foi totalmente possível, de acordo com Marcos dos Santos Marinho, auditor fiscal do MTE que participou da atividade. Para que pudessem comparecer à audiência que discutiu o enfrentamento ao trabalho infantil no município, a administração dispensou os servidores dos departamentos que devem dar atenção a crianças e adolescentes vulneráveis, como o Conselho Tutelar e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas). Apesar da dispensa, Marcos conta que foram poucos os servidores que compareceram. Além disso, ele disse à Repórter Brasil que “no dia, a sede do Creas estava fechada quando fomos lá”.

O município de 20 mil habitantes não está isento de problemas. Há dois anos a prefeitura de Oiapoque firmou um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com o MPT se comprometendo a tomar medidas para combater o trabalho infantil. Mesmo sendo um local de fronteira, o auditor fiscal conta que “Oiapoque não tem controle sobre as atividades dos estrangeiros”. Ele revela que a equipe que conduziu a Caravana Contra o Trabalho Infantil na cidade ouviu diversos relatos sobre meninas que cruzam o rio que separa o município do seu correspondente franco-guianense, São Jorge do Oiapoque, para se prostituir.

Além disso, Marcos explica que fez uma fiscalização recentemente na cidade e flagrou três adolescentes trabalhando em um lava-rápido – deles, dois têm 16 e um tem 17 anos. Apesar da idade, que permite o trabalho em certas circunstâncias, essa atividade é proibida a eles por causa do contato com substâncias químicas perigosas e faz parte da Lista TIP, que contém as piores formas de trabalho infantil. O auditor fiscal explica que o dono do lava-rápido chegou a consultar o Conselho Tutelar de Oiapoque e o servidor que o atendeu autorizou o trabalho. Quando procurado pela fiscalização, o funcionário do Conselho Tutelar afirmou desconhecer a Lista TIP.

Apesar de estar em vigor desde 2008, a lista também não era conhecida no Chuí. De acordo com Alexandre, o procurador do MPT que acompanhou a força-tarefa do início de novembro, “havia uma orientação equivocada de que crianças de 14 anos poderiam trabalhar”. Segundo a legislação vigente, nenhuma criança com menos de 14 anos pode trabalhar. Os jovens entre 14 e 15 anos só podem fazê-lo na condição de aprendiz – o que exige o acompanhamento de um empregado monitor – em atividade que não esteja na lista das piores formas de trabalho infantil.

A Repórter Brasil não conseguiu localizar nenhuma autoridade do município de Oiapoque para comentar as denúncias do auditor fiscal Marcos dos Santos Marinho.

(Foto da capa: Gijlmar/Flickr)

* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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“Há uma cultura de aceitação do trabalho infantil” http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/ha-uma-cultura-de-aceitacao-do-trabalho-infantil/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/ha-uma-cultura-de-aceitacao-do-trabalho-infantil/#comments Thu, 14 Nov 2013 20:50:30 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1767 Em entrevista à Repórter Brasil, a procuradora Sueli Bessa fala sobre a realidade do trabalho de crianças e adolescentes no estado do Rio de Janeiro e cobra políticas públicas que ataquem o problema

Por Maurício Thuswohl, para a Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Rio de Janeiro – Na Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílios (PNAD) realizada em 2012, o Rio de Janeiro aparece apenas no 26º lugar do ranking dos estados com maior incidência de trabalho infantil ilegal no Brasil. O bom desempenho fluminense dentro do contexto nacional, no entanto, não ilude os órgãos do poder público que atuam no setor, pois a realidade muitas vezes surge camuflada nas pesquisas, uma vez que estas não têm como levar em conta, por exemplo, o trabalho doméstico ao qual são submetidos crianças e adolescentes ou mesmo algumas das piores formas de trabalho infantil, como a prostituição ou o tráfico de drogas.

Segundo a PNAD 2012, existem 98.763 crianças de 5 a 17 anos ocupadas com trabalho ilegal no Rio de Janeiro, mas esse contingente seguramente é muito maior. Um indicativo da real dimensão do problema é o número de procedimentos sobre trabalho infantil que estão atualmente ativos na Procuradoria Regional do Trabalho da 1ª Região. Até outubro de 2013, eram 637 procedimentos que versavam sobre o trabalho de crianças e adolescentes, sendo 140 deles acompanhados com Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) e 437 ainda com investigação em andamento. Além disso, existiam outras 33 ações propostas com essa temática.

Sueli Bessa, procuradora do Ministério Público do Trabalho no Rio de JaneiroConhecedora da situação do Rio de Janeiro, a procuradora Sueli Bessa, do Ministério Público do Trabalho (MPT) e titular da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes na 1ª Região, fala, em entrevista à Repórter Brasil, sobre a realidade do trabalho infantil no estado. Primeira gerente nacional do projeto federal Políticas Públicas de Combate ao Trabalho Infantil, a procuradora analisa também a situação nacional e faz um balanço do cumprimento das metas de erradicação desse mal assumidas internacionalmente pelo governo brasileiro.

Em quais municípios do Rio de Janeiro o trabalho infantil acontece com mais frequência?

Nos municípios da Baixada Fluminense, como Belford Roxo, Duque de Caxias e Nova Iguaçu. Há também São Gonçalo, na região metropolitana. O próprio município do Rio de Janeiro tem um número expressivo de crianças e adolescentes em situação de trabalho ilegal, mas nesse caso temos de considerar o tamanho da população. No interior do estado, nós temos os municípios de Campos dos Goytacazes, Itaperuna e São João da Barra, que aparecem como os mais expressivos.

Em quais setores da economia fluminense o trabalho infantil é observado e com que incidência?

Em todas as áreas há trabalho infantil, não é privilégio de uma ou de outra. É bem pulverizado entre os setores. A gente recebe denúncias tanto do comércio quanto da indústria. Tem muito trabalho infantil na área rural, tem também na informalidade. A questão no Rio de Janeiro não é diferente do restante do país. É uma questão que, infelizmente, ainda está espraiada nos diversos setores. A incidência do trabalho infantil rural é maior no interior do estado, onde há, por exemplo, maior produção pecuária e agrícola. Há também a questão do trabalho infantil doméstico, que até hoje a gente não consegue quantificar porque acontece no interior dos lares e não há possibilidade de fiscalização por parte do poder público. Então, a gente tem de trabalhar muito com conscientização para que isso venha à tona. Não temos os dados concretos sobre trabalho infantil doméstico. E há ainda as piores formas, que são o tráfico de drogas e a exploração sexual para fins comerciais.

Quais as peculiaridades observadas no trabalho infantil em área rural? E em área urbana?

A informalidade em área urbana, geralmente, se dá sem qualquer empregador. São aquelas crianças nos sinais de trânsito e até no próprio tráfico de drogas. Na área rural, a gente tem um agravante, pois às vezes é a própria agricultura de subsistência que coloca essa criança ou esse adolescente lá para trabalhar no campo. Muitas vezes, é para contribuir com a renda da própria família. Uma peculiaridade da área rural brasileira, e isso se repete no Rio de Janeiro, é que o trabalho infantil acontece dentro da própria agricultura familiar, às vezes até mesmo na pecuária, com a criança acordando cedo para mexer com o gado etc. Muitas vezes, a própria família faz uso do trabalho infantil.

Existe algum tipo de acompanhamento feito às crianças que trabalham como catadores nos lixões em diversos pontos do Rio de Janeiro?

Temos atuado para que o poder público impeça o acesso de crianças e adolescentes a esses locais para catar lixo. É outro caso em que, na maioria das vezes, elas chegam trazidas por seus próprios familiares. Notadamente, agora que existe uma política nacional para a destinação de resíduos sólidos, esse problema tem sido atacado para que se retirem as crianças dessa condição, que também pode ser considerada uma das piores formas de trabalho infantil.

A cena é do Rio Grande do Norte, mas crianças trabalhando em lixões é uma realidade no país. (Foto: João Roberto Ripper)

A cena é do Rio Grande do Norte, mas crianças trabalhando em lixões é uma realidade no país. (Foto: João Roberto Ripper)

Quais as principais razões identificadas pelo MPT para a existência do trabalho infantil no Rio de Janeiro? Quais fatores contribuem para sua recorrência?

Os fatores que contribuem não são isolados também. Há uma gama de questões que a gente poderia citar. Por exemplo: há uma cultura de aceitação do trabalho infantil. Quem atua com essa temática logo verifica isso. Se for discutir o tema com a sociedade, você ouve recorrentemente se falar que ‘é melhor estar trabalhando do que na rua’. Então, se vê que há uma permissividade da sociedade em achar que aquilo é normal. Mas, veja bem, achar que é normal para o filho daquele que não tem condição social boa, porque todo mundo quer que o filho das classes média ou alta esteja se educando, não é isso? Outro ponto são os inúmeros problemas sociais que o nosso país tem. É óbvio que se a família não consegue gerar renda por si só, isso vai contribuir para trazer a criança e o adolescente para o trabalho. Há uma distorção de valores, e às vezes se impõe à criança e ao adolescente o papel que seria do adulto, que é o de dar sustentação e dar condições de subsistência ao seio familiar.

Eu aponto também a insuficiência de políticas do poder público – ou mesmo ausência em alguns lugares – definidas para buscar a erradicação do trabalho infantil. Embora isso tenha melhorado um pouco, ainda se trata da questão de termos a criança fora da educação, fora da escola. E não basta simplesmente criar escola, mas ter uma política de manutenção dessa criança e desse adolescente na escola para que não ocorra a evasão. Será que a escola hoje está cumprindo esse papel? Essa é uma questão que precisa ser discutida. Na minha modesta opinião, construída ao longo de dez anos de atuação dentro do Ministério Público, o que vejo é isso.

Diante do quadro atual, quais políticas públicas são necessárias para solucionar o problema do trabalho infantil no Rio de Janeiro?

São necessárias políticas de geração de renda para a família. Não simplesmente uma política pública de assistencialismo, mas de qualificação dos pais, de qualificação adequada ao mercado de trabalho daquele lugar em que eles residem. É preciso oferecer aos pais um curso que possibilite obter um posto de trabalho naquela localidade. Então, tem de ser uma política de geração de renda adequada para cada município. Outro ponto seria a adoção de escolas de educação integral. Algumas poucas escolas começam a caminhar nessa trilha, mas ainda não há uma política generalizada de educação integral. Que o poder público adote políticas de profissionalização para o adolescente pela via regular através da qual ele poderia ingressar no mercado de trabalho a partir dos 14 anos, que é por meio da aprendizagem. Com a aprendizagem, ele vai gerar renda para a família, e você vai incluir o adolescente dentro de um trabalho regular e tendo acesso a todos os direitos garantidos, porque é um contrato de trabalho especial. Teremos o ganho de ele ser futuramente um cidadão qualificado e a empresa tem o ganho de contar com um trabalhador qualificado.

Quando falamos da aprendizagem, não falamos de um instituto qualquer, falamos de um instituto multifacetário que vai contribuir realmente para a erradicação do trabalho infantil. É preciso também que os municípios instituam programas sociais que realmente retirem essa criança e esse adolescente dessa situação. O que a gente verifica com nossa experiência é que são raros aqueles municípios que fazem um diagnóstico do trabalho infantil. O poder público tem de assumir esse compromisso de verificar se existe realmente trabalho infantil e identificar os casos para, depois, fazer a inclusão desses adolescentes em programas sociais para retirá-los dessa condição.

E o que mais?

Poderíamos citar algumas outras políticas públicas: entre outras, acolhimento às vítimas de exploração sexual e atendimento ao adolescente que caiu no problema da drogadição, que é um problema epidêmico em nosso país hoje. Não existe uma política para tentar retirar esse adolescente e buscar um outro caminho, um tratamento sério. Tem tanta coisa que poderia ser feita, e a gente vê que o poder público ou se omite ou às vezes não implementa políticas suficientes que possam tratar o problema de uma forma globalizada, articulada e inter-setorial. Além da identificação e da inclusão, o próprio poder público pode implementar programas de profissionalização ou então articular para que os programas aconteçam naquela localidade. Às vezes, em um município tal, tem muitas empresas e nenhum curso de aprendizagem. Então, o poder público, cumprindo seu dever de cuidar da profissionalização, pode articular com instituições que façam a aprendizagem para que esta aconteça naquela localidade, para dar oportunidade para aqueles adolescentes serem incluídos no mercado de trabalho de forma regular. É muita coisa que se pode fazer, mas que não se faz ou que se faz de forma incipiente e que não atende à demanda daquela localidade. Outra política que compete ao poder público é estruturar os órgãos de atendimento à criança e ao adolescente de forma adequada, como o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Crea), o Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e o Conselho Tutelar. Hoje, nós temos locais que atuam ainda de forma muito precária. É preciso atuar na capacitação desses conselhos porque são eles que estão na linha de frente.

Nos grandes centros, como Brasília, é comum ver crianças trabalhando como vendedores de balas nos faróis (Foto: Renato Araújo/ABr)

Nos grandes centros, como Brasília, é comum ver crianças trabalhando como vendedores de balas nos faróis (Foto: Renato Araújo/ABr)

A parceria do MPT com ministérios e outros órgãos do Poder Executivo funciona no Rio de Janeiro? Apenas o trabalho cotidiano de fiscalização realizado pelo MPT ou por auditores do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) é suficiente para erradicar o trabalho infantil?

Não se combate nem erradica o trabalho infantil com uma instituição de forma isolada. Esse trabalho envolve uma articulação não só com o Ministério do Trabalho e Emprego, que é quem tem a função de fiscalizar, mas também com outros órgãos e instituições que têm de primar por essa erradicação. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, temos buscado uma articulação com o Ministério Público Estadual (MPE), que tem um trabalho muito importante nisso, com o MTE, com os conselhos tutelares, com os conselhos municipais de direitos das crianças e adolescentes, com a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal porque, principalmente na questão da exploração sexual para fins comerciais, é fundamental que ocorra essa articulação que, aliás, está ocorrendo neste momento em busca de uma forma de atuação conjunta. A fiscalização em si e o MPT sozinho não são suficientes para contribuir para a erradicação do trabalho infantil. Nós teríamos de fazer um trabalho de articulação, inclusive nos fóruns estaduais, discutindo essa temática com a sociedade. Nós, que acabamos de participar da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, sabemos que não há outro caminho que não seja a articulação e a atuação inter-setorial. Temos de trabalhar com a educação, com a saúde. Nós do Ministério Púbico temos buscado também, por exemplo, uma aproximação com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS).

Fale um pouco, por favor, sobre os resultados do projeto “Políticas Públicas de Combate ao Trabalho Infantil” no Rio de Janeiro.

Na verdade, nós temos três projetos relativos à infância que estarão sendo implementados no estado, em princípio até 2015. Temos esse que você citou, de implementação de políticas públicas. Esse projeto é voltado ao poder público, a gente atua em face dos municípios para que eles façam acontecer as políticas públicas. Este ano, aqui mesmo na Procuradoria Regional do Trabalho de Campos dos Goytacazes, onde atuo, instauramos procedimentos nos municípios que apresentam os maiores índices de trabalho infantil, que são Campos, Itaperuna e São João da Barra. A ideia é que em 2014 no Rio de Janeiro, assim como nos outros estados, a gente busque crescer o projeto para pelo menos dois municípios em cada unidade do MPT no país. Temos também o projeto MPT na Escola, pelo qual a gente busca discutir o tema do trabalho infantil com alunos das séries do ensino fundamental em todas as escolas municipais. Isso é fundamental para que se possa levar essa discussão para a sociedade. Chegando à escola, vai chegar às famílias, é isso o que a gente quer. A greve dos professores impediu que implementássemos o MPT na Escola de uma forma generalizada no município Rio de Janeiro, mas a Secretaria Municipal de Educação ficou de nos dar um retorno para ver se implementa o projeto no início do ano que vem. Não nos deu ainda a palavra final, mas não tem por que não implementar.

E tem ainda o Projeto de Aprendizagem, pelo qual a gente busca a inclusão dos adolescentes no mercado de trabalho por meio da aprendizagem, pois a gente pode cobrar o cumprimento da cota de aprendizagem. A gente cobra isso, fazendo que o poder público municipal implemente a aprendizagem no município e também articulando para que as empresas daquela localidade tenham condições de cumprir a cota. Nós estamos buscando a implementação cada vez mais incisiva dos projetos aqui no estado. Estamos com um trabalho muito interessante de articulação com a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal e o MPE. Nós já realizamos dois encontros e conseguimos pontuar os focos de exploração sexual. Vamos pensar em algumas estratégias conjuntas agora, já para esse ano e principalmente antes desse grande evento que será a Copa do Mundo, para poder atuar. Será um projeto interinstitucional: quatro instituições no mínimo participarão dessas ações. Além disso, o MPE está organizando um material voltado à capacitação da Polícia Militar e da Guarda Municipal do Rio de Janeiro nesse tema da exploração sexual. Esses setores, que também atuam lá na ponta, precisam saber para onde direcionar os casos quando acontecem. Haverá não só um material destinado a esse público, como uma capacitação feita pelo MPT e pelo MPE. O MPT elaborou um material voltado ao Conselho Tutelar para poder capacitar os conselheiros, porque essa capacitação tem de ser permanente. Esse material aborda todas as temáticas relativas ao trabalho infantil.

A realidade do trabalho infantil hoje no Rio de Janeiro e no Brasil pode ser finalmente medida em números?

A gente percebe que no início, em 2009 ou 2010, quando o Brasil começou a assumir o compromisso de erradicar o trabalho infantil, esses números caíam de uma forma mais célere. O que a gente observa de 2011 para cá é que essa redução vem sendo feita de forma mais lenta. Em 2011, eram no Brasil todo 3.673.898 crianças de 5 a 17 anos em situação de trabalho irregular. Em 2012, esse número passa para 3.517.540. Caiu o número? Caiu, mas a redução tem sido mais lenta. A gente vai ter de ver o que vai fazer para tentar dar uma acelerada nisso, porque o compromisso do Brasil é que até 2016 estejam erradicadas as piores formas de trabalho infantil. A gente vai ter de continuar discutindo de forma articulada para ver o que se pode fazer para que essa redução ocorra de uma forma mais significativa. Acho que até 2016 vai ficar difícil pra gente cumprir esse compromisso, mas vamos fazer tudo o que for possível para poder pelo menos minimizar isso. A PNAD 2012 aponta o Rio de Janeiro no 26º lugar do ranking. Em 2011, era o 24º colocado. Quer dizer: se você olhar pelos dados da PNAD, melhorou um pouco. Mas a gente não pode esquecer que isso é uma pesquisa por amostragem. No Estado do Rio de Janeiro, de acordo com a PNAD 2012, existem 98.763 crianças de 5 a 17 anos ocupadas com trabalho. É um número expressivo, mas nele não está incluído o trabalho infantil doméstico, que a gente não pode computar. E o quantitativo de vítimas de exploração sexual para fins comerciais, que a gente também não tem como computar? E os que atuam como os ditos ‘aviõezinhos’ no comércio de drogas? Esses números são interessantes para algum parâmetro, mas, em nossa opinião, eles não expressam a realidade porque existem questões que ainda não temos como quantificar. A realidade não pode ser medida por números. Nós os tomamos apenas como indicadores, mas, por isso tudo que citei, não temos como quantificar de fato quantas crianças estão em situação de trabalho.

* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Crianças trabalham como ambulantes nos arredores da Arena Fonte Nova, em Salvador http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/criancas-trabalham-como-ambulantes-nos-arredores-da-arena-fonte-nova-em-salvador/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/criancas-trabalham-como-ambulantes-nos-arredores-da-arena-fonte-nova-em-salvador/#comments Thu, 31 Oct 2013 17:12:07 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1737 Enquanto o luxo predomina no lado de dentro de um dos estádios da Copa do Mundo, no lado de fora o trabalho infantil é comum na venda de cerveja, nas barraquinhas de churrasco e na coleta de latas de alumínio, entre outras atividades

Por André Uzêda, para a Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Salvador (BA) – Em uma sintomática contradição biológica, a Arena Fonte Nova, estádio baiano erguido para a Copa do Mundo de 2014, tem exposto suas vísceras do lado externo da arquitetura que emoldura sua construção. Divididas entre brasas incandescentes, bandejas mal equilibradas e servindo latinhas de cerveja, um batalhão de crianças executa atividades profissionais sob olhares pouco desconfiados dos que ali transitam.

É um domingo, 27 de outubro, e os torcedores se aglomeram nos arredores do estádio para acompanhar o embate entre Bahia x Atlético-PR, em Salvador, pela 31ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2013.

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Demolida e reconstruída para a Copa do Mundo, Fonte Nova apresenta interior luxuoso. Foto: Secom-BA

As crianças e jovens que compõem esse cenário da exploração aparentam idade entre 8 e 17 anos e se agrupelham entre as mais diversas atividades informais ofertadas no espaço. Tal qual uma ciranda desencontrada, algumas vendem cervejas acompanhadas dos pais, enquanto outras recolhem latas de alumínio abandonadas no chão. Há ainda as que, próximas ao braseiro, onde são assadas carnes para serem comercializadas, ignoram os perigos da inalação da fumaça ou riscos de queimaduras com a imprudência própria da idade. A brutalidade envolve a atmosfera do lugar, sob olhares embrutecidos de quem enxerga aquilo como cenário habitué.

O barulho ambiente, exagerado a ponto de extrapolar as cercanias do lugar, parece sufocar a presença da pequena Vanessa**, de apenas 9 anos. A garota, apenas mais uma entre tantas outras crianças submetidas ao trabalho infantil naquele espaço, mantém o olhar em um ponto fixo, evasivo.

A menina carrega um curativo acima do olho direito, fruto de uma traquinagem infantil, enquanto apostava corrida durante o recreio escolar. Quando perguntada pela reportagem por que, mesmo tão nova, precisa ir trabalhar, sorri timidamente: “Fala com minha mãe, moço”.

“Melhor do que ficar na rua”
Há 20 anos, a senhora de 52 anos estabeleceu seu ponto de venda de cerveja em jogos do Bahia. A bebida é armazenada em um isopor largo, equilibrado em um carrinho de mão. Ela é mãe da pequena desconfiada, embora também acumule a função de chefia nessa relação familiar. “Tem pouco tempo que comecei a levá-la para me acompanhar. Vanessa fica mais aqui para cuidar das coisas enquanto eu vou ao banheiro ou preciso trocar um dinheiro. Não posso deixar o lugar vazio”, pontua a matriarca.

Em média, estima a ambulante, em um dia de jogo é possível arrecadar até R$ 400 com a venda de bebidas alcoólicas (proibidas no interior do estádio por resolução da CBF). Com o marido encostado pelo INSS, após cirurgia delicada, ela virou responsável por sustentar a casa ao mesmo tempo que cuida da sua prole. “Essa é outra razão pela qual levo Vanessa comigo. É melhor do que ela ficar na rua, sem ter o que fazer, desocupada…”, argumenta.

Vanessa bebe água enquanto ajuda sua mãe a vender cerveja do lado de fora do estádio. Foto: André Uzêda

Vanessa bebe água enquanto ajuda sua mãe a vender cerveja do lado de fora do estádio. Foto: André Uzêda

Explicação comum
De acordo com a socióloga baiana Inaiá Carvalho, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), dois elementos na fala dessa vendedora resumem a condição do trabalho infantil em território brasileiro. “Esse problema [trabalho infantil] ainda é visto pelos pais como um fator educacional. Na falta de uma escola em tempo integral, eles acham que, muitas vezes, é melhor ter o filho por perto, mantendo-o longe da rua, do crime e de tantos outros problemas”, diz a pesquisadora, que emenda: “A outra condição é estritamente social. O trabalho na infância está ligado à criança pobre, estritamente. Não se fala dessa questão entre jovens e crianças de classe média, por exemplo”, afirma. Especialistas na questão costumam defender que em vez de se criminalizar os pais, é necessário realizar um trabalho de conscientização e de fornecimento de garantias sociais.

A socióloga, porém, diz enxergar avanços consistentes nos últimos anos em relação ao combate ao trabalho infantil no Brasil. “Desde a década de 1990, os governos vêm sistematicamente trabalhando contra essa chaga social. A própria sociedade despertou de uma postura de passiva naturalidade para uma de horror escandalizado diante do trabalho infantil, sobretudo aquele mais pesado, na extração do sisal, carvoarias e plantação de cana-de-açúcar. Desde o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, sancionada em 1990), os números de casos estão diminuindo”, afirma.

Sem escola em tempo integral
Apesar da redução de 13,44% na última década, entre jovens que trabalham dos 10 aos 17 anos, segundos dados do último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística), os números apontam estagnação da exploração infantil como mão de obra na zona rural e no setor informal da economia, como é o caso das crianças que trabalham ao redor da Fonte Nova. “São duas vertentes que tiveram baixas importantes, mas estagnaram. Chegamos a um ponto em que a única forma de resolver essa questão é com a redução drástica da pobreza e com escolas com acompanhamento integral para os jovens”, afirma a professora Inaiá Carvalho.

A ausência de uma instituição de ensino que prolongue suas atividades em mais de um período é a principal causa, por exemplo, para Gilvan**, de 14 anos, acompanhar uma senhora de 60 anos na sua rotina de trabalho. O garoto, que recolhe dinheiro enquanto ela assa espetos de carne, não possui qualquer relação de parentesco com a vendedora.

A reportagem encontrou o adolescente trabalhando nos arredores da Arena Fonte Nova em uma quinta-feira à noite, dia 24 de outubro, momentos antes da partida Bahia x Nacional de Medellín (Colômbia), pelas oitavas de final da Copa Sul-Americana. “Ele é meu vizinho, lá do subúrbio ferroviário. A mãe dele sai para trabalhar e passa o dia todo na rua, só volta de noite. Ela que me pede para levá-lo para o trabalho, porque ele pode juntar um dinheiro e também fica mais seguro”, diz a churrasqueira.

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No total, nova arena custou R$ 688,7 milhões, a serem pagos em 15 anos. “Nunca entrei lá não”, revela Vanessa. Foto: Carol Garcia/Secom-BA

Copa do Mundo
O olhar de Vanessa, perdido no horizonte, em algum momento talvez se depare com a suntuosidade da Arena Fonte Nova. A praça esportiva seria levantada ao custo inicial de R$ 591,7 milhões, celebrados por um contrato de PPP (Parceria Público Privada) entre governo do estado e as construtoras OAS e Odebrecht. Entretanto, um aditivo contratual de R$ 97,7 milhões elevou o valor final do empreendimento para R$ 688,7 milhões, no total. A serem pagos nos próximos 15 anos.

Tal grandeza numérica, traduzida em conforto, rótulos de sustentabilidade e embalagem de segurança para o mundial brasileiro, ainda que fisicamente próximos parecem léguas de distância da realidade da pequena Ana Carolina. “Nunca entrei lá não”, confidencia a garota, em referência ao luxuosíssimo estádio.

Enquanto embala sonhos do lado de dentro, fora o estádio expõe suas vísceras.

* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

** Os nomes são fictícios para preservar a identidade das fontes.

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Ex-presidente Lula diz que falta vergonha para acabar com trabalho infantil http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/ex-presidente-lula-diz-que-falta-vergonha-para-acabar-com-trabalho-infantil/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/ex-presidente-lula-diz-que-falta-vergonha-para-acabar-com-trabalho-infantil/#comments Fri, 11 Oct 2013 22:37:38 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1695 Conferência Global realizada em Brasília aponta necessidade de acelerar esforços para erradicar o trabalho infantil até 2016 

Por Antonio Biondi, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Brasília (DF) – “Falta vergonha e vontade política para acabar com o trabalho infantil. Recursos existem, certamente.” O ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, resumiu em poucas e agudas palavras um sentimento que permeava toda a programação da III Conferência Global Sobre Trabalho Infantil, realizada durante esta semana em Brasília (8 a 10). Em seu documento final, a “Declaração de Brasília”, a Conferência afirmou “a necessidade de acelerar os esforços em todos os níveis para erradicar o trabalho infantil, em particular suas piores formas até 2016”.

O evento destacou a centralidade do Brasil e da América Latina na agenda de combate ao trabalho infantil, definindo que a IV Conferência Global será realizada na Argentina, em 2017. O encontro também afirmou a relevância da cooperação entre países para a erradicação do problema, além do envolvimento e da articulação entre os vários atores no plano nacional e internacional.

Em sua participação, na manhã do último dia 10 – que se afirmou como um dos pontos mais fortes e emblemáticos da Conferência –, o ex-presidente Lula destacou que, desde 2008, mais de 10 trilhões de dólares foram gastos no socorro e proteção aos bancos, indústrias, seguradoras e outros segmentos ligados ao setor privado. E lembrou que a Guerra no Iraque já consumiu entre 1,7 trilhão e 3 trilhões de dólares.

Lula resgatou memórias de suas viagens pelo mundo e pelo Brasil, destacando a degradação causada pela fome e pela pobreza. Contou, por exemplo, de uma ocasião em que se deparou com crianças mastigando bolachas de argila no Haiti, por não terem recursos para comprar comida. E disse ter visto o mesmo desespero em pessoas na África, na Ásia e na América Latina. No Brasil, registrou a situação em que encontrou crianças mastigando a palma forrageira para enganar a fome e a sede no Nordeste. E contou que ele só foi comer pão pela primeira vez em sua vida aos 7 anos.

Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa da 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa da 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Lula destacou ter perdido o dedo de sua mão esquerda trabalhando das 22hs às 6hs como operário, aos 17 anos, quando era proibido trabalhar nesse horário. Falando especificamente das crianças e adolescentes que hoje trabalham em atividades que oferecem perigos adicionais a elas, Lula lembrou que “quando a pessoa precisa levar alguma comida para casa, alguma renda, ela faz aquilo mesmo sabendo que é errado ou dos riscos envolvidos”.

O ex-presidente registrou concordar que existam vários fatores que contribuem para a existência do trabalho infantil, mas que certamente a miséria e a fome são determinantes. “Os mapas que registram esses problemas coincidem rigorosamente”, concluiu, passando em seguida a elencar uma série de conquistas obtidas pelo Brasil nessas áreas nos últimos anos – bem como agendas a serem priorizadas pelo país e por outras nações no combate ao trabalho infantil nos próximos anos.

Brasil central
Durante a coletiva de imprensa realizada ao final do evento, perguntou-se ao presidente da OIT, Guy Ryder, se o fato de a diminuição do trabalho infantil ter atingido 36% da meta planejada para o período entre 2010 e o final de 2016 não seria uma indicação de que a OIT e a comunidade internacional deveriam rever as metas e estipular algo mais realista.

O presidente da OIT discordou, defendendo que o roteiro estipulado em Haia em 2010, na conferência anterior, deveria ser mantido, com a intensificação dos esforços para chegar à Argentina em 2017 com o objetivo cumprido – ou o mais próximo possível a isso. Para tanto, será necessário se retirar do trabalho infantil as mais de 168 milhões de crianças e adolescentes ainda envolvidas no problema em 2012 – 85 milhões das quais nas piores formas de trabalho. Em 2000, o número global era de 246 milhões de crianças e adolescentes.

Para Ryder, “o intercâmbio de experiências será essencial nesse próximo período, e o Brasil possui um papel central nisso. O Brasil está implementando políticas que estão, sim, dando certo”, afirmou, pedindo licença à ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, para fazer tal avaliação sobre as medidas aplicadas pelo governo brasileiro.

Na própria coletiva, perguntou-se à ministra, cuja pasta incumbiu-se da organização da Conferência, quantas crianças e adolescentes atualmente trabalham no Brasil, e quais as metas do país para os próximos anos. Campello destacou que hoje há 2 milhões de jovens acima de 16 anos trabalhando no Brasil, além de 1,5 milhão com menos de 16 anos e que trabalham.

A ministra afirmou que o governo Dilma não adota atualmente uma diferenciação entre o trabalho infantil no seu todo e em relação às piores formas de trabalho pelo fato de ter conseguido bons resultados atacando o problema na sua totalidade. Ao passo que a diminuição mundial ficou em cerca de 36% entre 2000 e 2012, no Brasil a diminuição atingiu 67%. “Pretendemos então seguir trabalhando na mesma linha, e com metas bem ambiciosas nesse sentido.”

Ministros do Trabalho, Manoel Dias; do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello; das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo; e o diretor-geral da OIT, Guy Ryder. Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Ministros do Trabalho, Manoel Dias; do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello; das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo; e o diretor-geral da OIT, Guy Ryder. Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Campello afirmou que o governo pretende enfrentar um primeiro desafio emergencial, relativo ao trabalho de crianças em lixões, que deve ser atacado ainda em 2014, no contexto da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Além disso, a análise do governo federal é que o trabalho infantil não está mais concentrado em alguns grandes setores, devido à queda já verificada nos principais segmentos que se utilizavam da mão de obra infantil. A ministra afirmou que agora será necessário enfrentar um novo núcleo duro do trabalho infantil, dentro das casas, das propriedades rurais, que diz respeito ao trabalho doméstico e familiar, por exemplo. Para ela, essas novas ações precisarão de outras iniciativas, ao lado da fiscalização, para que logrem sucesso. “Será necessário priorizar a educação, a orientação, o convencimento, buscar transformações culturais”, defendeu.

América Latina em foco
Em diálogo com o intercâmbio defendido pelo presidente da OIT e pelas novas agendas apontadas pela ministra brasileira, a política de enfrentamento ao trabalho infantil doméstico possui exemplos interessantes a serem conhecidos. No Uruguai, por exemplo, o governo do presidente José ‘Pepe’ Mujica já aplica hoje uma metodologia para enfrentar a questão.

Com mais de 1.300 pessoas presentes, vindas de 154 países, com representantes de 135 governos – um marco, especialmente por se tratar de um evento não organizado diretamente pela ONU –, a III Conferência Global Sobre Trabalho Infantil registrou um razoável protagonismo dos países da América Latina.

Menino carrega carrinho de mão em feira livre no interior do Rio Grande do Norte. Foto: Marinalva Dantas

Menino carrega carrinho de mão em feira livre no interior do Rio Grande do Norte. Foto: Marinalva Dantas/SRTE-RN

Além de a Argentina ter obtido sucesso em sua proposta pela realização no país da Conferência Global sobre a Erradicação Sustentada do Trabalho Infantil em 2017, em diversos momentos do encontro em Brasília iniciativas verificadas na região foram apresentadas e destacadas – e certamente poderão ter aplicabilidade e efeitos semelhantes em países dos outros continentes.

O governo do Equador, por exemplo, realizou uma apresentação bastante ampla de seu programa de combate ao trabalho infantil, no qual saltam à vista: o papel destacado conferido aos municípios (com leis e políticas próprias destinadas ao problema), a atuação do governo central não só como responsável pelas normas e sua fiscalização, mas também como orientador e facilitador, e ainda a presença muito forte das políticas de educação e geração de renda.

Eleonora Slavin, da Argentina, ao participar da sessão semiplenária a respeito do papel do sistema judicial no combate ao trabalho infantil, explicou que houve mudanças importantes nos últimos anos nas leis do país. Eleonora destacou que, primeiramente, foi aprovada uma lei proibindo o trabalho aos menores de 16 anos, e que, em março de 2014, houve uma alteração no Código Penal argentino, que passou a prever a pena de um a quatro anos de prisão para quem se valer do expediente do trabalho infantil.

Para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além das conquistas verificadas no Brasil, “o combate ao trabalho infantil também avançou em muitos outros países, sobretudo na América Latina, onde muitos países adotaram modelos de desenvolvimento com inclusão social”.

Desafio de todos
Em sua participação na Conferência, Lula defendeu que a erradicação do trabalho infantil “é uma responsabilidade de todos nós, não só da presidenta, do ex-presidente, mas de toda a sociedade”. O ex-presidente brasileiro destacou ainda o papel fundamental a ser desempenhado nesse sentido pelo Ministério Público, pelo Ministério do Trabalho e Emprego e Poder Judiciário.

Rafael Marques, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), em sua exposição na sessão a respeito do papel do sistema judicial no combate ao trabalho infantil, apresentou o projeto “Políticas Públicas”, implementado por uma coordenação do MPT, tendo à frente os procuradores Alexandre Ragagnin e Sueli Bessa.

Encerramento da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, realizada em Brasília: 154 países presentes, reunindo mais de 1.300 pessoas. Foto: Divulgação/OIT

Encerramento da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, realizada em Brasília: 154 países presentes, reunindo mais de 1.300 pessoas. Foto: Divulgação/OIT

Marques explicou que o projeto inicialmente identificou os 20 piores municípios em termos de trabalho infantil em cada Estado. Além de trabalhar no sentido de compreender a situação da criança e da família, o projeto vai em busca de entender as causas, com vistas a atacar as consequências e evitar o retorno da criança à situação de risco em que se encontrava.

Para que o projeto alcançasse resultados melhores, o MPT teve como premissa o estabelecimento de parcerias, seja com ministérios do governo federal (Saúde, Trabalho, Desenvolvimento Social), seja com as Câmaras Municipais, famílias, aparato policial e instituições da sociedade.

Nos municípios em que se identifica uma maior omissão do poder público em relação a seus deveres constitucionais, o MPT instaura um inquérito civil, que por sua vez pode gerar ou Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) por parte dos municípios junto ao MPT, ou mesmo ações na Justiça voltadas à inibição do ilícito e a pedidos de indenização voltados às crianças e famílias envolvidas – bem como a toda a coletividade.

De acordo com o procurador, o projeto instaurou investigações em 53 municípios em 2012, levando à assinatura de 30 TACs, e a medidas por parte das prefeituras, empresas e outras instituições locais que beneficiaram cerca de 42 mil crianças entre 10 a 17 anos.

A necessidade de uma ação coordenada envolvendo todas as nações foi destacada também pela presidenta Dilma Rousseff, na abertura da Conferência. Dilma destacou a importância da articulação entre os países, e também entre os vários setores envolvidos com a questão.

As palavras da presidenta foram reforçadas pela Declaração dos Adolescentes participantes da 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil apresentada na Conferência, na qual os jovens destacam seu interesse em participar mais dos processos de decisão política. Ao apresentar suas propostas, os jovens ressaltaram possuir outra visão de mundo, diferente da dos adultos, que precisa ser cada vez mais considerada – a fim de evitar a repetição de erros cometidos pela atual geração de políticos e construir novas soluções.

Garotos trabalham na cata do sururu no Recife. Foto: Igor Ojeda

Garotos trabalham na cata do sururu no Recife. Foto: Igor Ojeda

Além da Declaração de Brasília e da elaborada pelas crianças e adolescentes, a Conferência foi palco da apresentação de outros documentos e iniciativas, nos quais a articulação e as parcerias também obtiveram destaque. Foi o caso, por exemplo, da criação do Grupo Interagencial sobre Trabalho Infantil das Nações Unidas (Giti). O grupo, que buscará levantar 20 milhões de dólares para um fundo próprio voltado ao desenvolvimento de suas ações, conta com a presença da OIT e de outras agências da ONU que desenvolvem ações de enfrentamento ao trabalho infantil: Organização Panamericana de Saúde/OMS; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud); Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), ONU Mulheres; Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO); Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef); e o Fundo das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco).

No encerramento da III Conferência, o presidente da OIT avaliou que o encontro, além de apresentar um impressionante número de participantes e países, e de representantes de governos, sociedade civil, empregadores e trabalhadores, também colheu um impressionante número de resultados. “E nos permitiu compreender muito melhor os problemas.”

O indiano Kailash Satyarthi, um dos responsáveis pela criação da Marcha Global contra o Trabalho Infantil, também compartilhou da avaliação positiva do evento, considerado “único” por ele. “Agora, precisamos fazer mais daquilo que já sabemos fazer e fazemos. Precisamos agir para tornar a Declaração final da Conferência realidade”.

Declaração de Brasília  

O documento final da III Conferência Global Sobre Trabalho Infantil, a Declaração de Brasília, ressalta que “o combate ao trabalho infantil e a Agenda de Trabalho Decente devem receber a devida consideração na agenda de desenvolvimento pós-2015 das Nações Unidas”.

Entre seus 24 pontos, a Declaração defende o aprofundamento da cooperação internacional, inclusive a cooperação “triangular” e entre países do Sul (Sul-Sul), além de afirmar que os participantes da Conferência buscarão “engajar a mídia nacional e internacional, as redes sociais, a academia e os órgãos de pesquisa, como parceiros na sensibilização para a erradicação sustentada do trabalho infantil”.

O documento registra a importância da continuidade da promoção do “engajamento de todos os setores da sociedade” na questão, bem como de “Ministérios e outros órgãos do Estado, de Parlamentos, dos sistemas judiciais, de organizações de empregadores e trabalhadores, de organizações regionais e internacionais e de atores da sociedade civil”.

A Declaração aponta, por outro lado, que “os governos têm o papel principal e a responsabilidade primária”, além de destacar a importância do “uso efetivo, coerente e integrado de políticas e serviços públicos nas áreas do trabalho, da educação, da agricultura, da saúde, do treinamento vocacional e da proteção social”.

Para os presentes à III Conferência, a formalização da economia e as ações de monitoramento, avaliação e as inspeções de trabalho são outras iniciativas a serem fortalecidas, bem como possíveis incrementos do arcabouço legal e institucional de cada Estado.

Em seu preâmbulo, a Declaração de Brasília sobre Trabalho Infantil reconhece “os esforços e os progressos realizados e ainda em andamento, a despeito da crise econômica e financeira global”, mas reconhece “a necessidade de acelerar os esforços em todos os níveis para erradicar o trabalho infantil, em particular suas piores formas até 2016”.

O documento cita, ainda, o “progresso feito pelos Estados na ratificação das Convenções 138, sobre Idade Mínima de Admissão ao Emprego, e 182, sobre a Proibição e Ação Imediata para a Eliminação das Piores Formas de Trabalho Infantil, da OIT, e reiterando a importância de promover sua ratificação universal e sua efetiva implementação”. Ainda nesse ponto, a Declaração convida “os países a considerar a ratificação de outros instrumentos relevantes, como a Convenção 189, sobre Trabalho Decente para Trabalhadores Domésticos, bem como a Convenção 129, sobre Inspeção do Trabalho na Agricultura, e a Convenção 184, sobre Segurança e Saúde na Agricultura”.

Embora já tenha ratificado as Convenções 138 e 182 da OIT, o Brasil ainda não ratificou a 129 e a 184, adotadas respectivamente em 1969 e 2001 pela Organização Internacional do Trabalho, nem a 189, de 2011.

Leia outras reportagens sobre a Conferência Global no site Promenino:
Desafios do Brasil para erradicação do trabalho infantil
Entrevista exclusiva com ministra Tereza Campello
Pouco debatido, trabalho infantil nos países desenvolvidos gera preocupação 
Plenária discute crianças e adolescentes em conflitos armados e o aumento da rede de exploração sexual 
Vulnerabilidade da agricultura na cadeia produtiva aumenta chances para o trabalho infantil

* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Operação flagra trabalho infantil em plantações no interior de São Paulo http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/operacao-flagra-trabalho-infantil-em-plantacoes-no-interior-de-sao-paulo/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/operacao-flagra-trabalho-infantil-em-plantacoes-no-interior-de-sao-paulo/#comments Thu, 03 Oct 2013 15:40:21 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1653 Fiscalização encontrou 21 meninos e meninas trabalhando na colheita de vegetais em seis municípios paulistas. A maior dificuldade, no entanto, é superar aceitação cultural do problema

Por Stefano Wrobleski, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Uma fiscalização conjunta do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministério Público do Trabalho (MPT) localizou 21 crianças e adolescentes vítimas de trabalho infantil em pequenas propriedades de seis municípios do interior de São Paulo. Seis tinham entre seis e doze anos. Elas colhiam beterrabas de chinelos ou descalços, sem qualquer proteção. Alguns exibiam ferimentos nas mãos.

Entre as vítimas, seis crianças com menos de 12 anos trabalhavam na colheita de beterraba (Fotos: MPT-15)

Entre as vítimas, seis crianças com menos de 12 anos trabalhavam na colheita de beterraba (Fotos: MPT-15)

Os municípios de Itobi, Casa Branca, São José do Rio Pardo, Santa Cruz das Palmeiras, Vargem Grande do Sul e Mococa ficam a cerca de 250 quilômetros da capital paulista. A região tem 223 mil habitantes e aproximadamente 10 mil trabalhadores no meio rural, divididos entre 1,2 mil produtores. Eles se distribuem principalmente nas colheitas de batata, cebola, beterraba e laranja.

A diligência, que aconteceu entre 9 e 14 de setembro, faz parte de uma operação maior dos dois órgãos, que visa reduzir a incidência de trabalho infantil e irregularidades trabalhistas na região. Em agosto, uma audiência reuniu cem produtores rurais na Câmara Municipal de Itobi com o objetivo de conscientizá-los sobre a proibição do trabalho de crianças e adolescentes em plantações, que ainda é comum na região.

Trabalhador com os pés descalços: falta de proteção é recorrente

Trabalhador com os pés descalços: falta de equipamento de proteção é recorrente

Entre os desafios para o combate ao emprego de meninos e meninas nas lavouras está a aceitação cultural; a prática atravessa gerações. Por envolver condições insalubres e manuseio de ferramentas perigosas, o trabalho rural infantil nas condições encontradas neste caso pode ser enquadrado, segundo o MPT, entre as piores formas de trabalho infantil, definidas em decreto de 2008, que regulamentou a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Quem tem menos de 18 anos não pode trabalhar nestas atividades nem como aprendiz.

Além das crianças e adolescentes, a fiscalização encontrou cerca de mil pessoas atuando em 25 fazendas sem registro em carteira ou equipamento de proteção individual. Elas não tinham acesso a banheiro e os alojamentos de 19 dos trabalhadores, que não eram da região, estavam em condições ruins.

O número teria sido ainda maior, se não fossem as dificuldades para a fiscalização: “Quando viram que estávamos chegando a uma das fazendas, colocaram um carro para barrar nossa entrada. Então, nós tivemos que pular a cerca e sair correndo atrás dos três ônibus onde estavam alguns trabalhadores. Eu mesmo tive que correr por 300 metros para pegar um deles”, contou o auditor fiscal do trabalho Antônio Valério Morillas Júnior, que acompanhou a operação. Outro problema apontado por Antônio é a falta de funcionários do MTE, que deixa o órgão em uma “situação extremamente precária”. Para fiscalizar as 25 fazendas, eles puderam contar com apenas sete auditores fiscais.

Entidades organizaram audiência com produtores da região para conscientização

Entidades organizaram audiência com produtores da região para conscientização

Para erradicar o trabalho infantil e sanar as questões trabalhistas as entidades têm orientado os produtores a criar cooperativas rurais para, por exemplo, baratear os custos com a compra de equipamentos de proteção individual: “Como as colheitas são de cultura rápida, mas devem ser feitas em momentos diferentes, os produtores podem compartilhar os equipamentos quando estes estiverem ociosos”, explica o auditor. Apesar do trabalho educacional, as fiscalizações devem continuar e a equipe já disse que vai voltar às fazendas no início do próximo ano, quando novas colheitas serão feitas.

 

* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Crianças sem identidade, o trabalho infantil na produção de castanha de caju http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/criancas-sem-identidade-o-trabalho-infantil-na-producao-de-castanha-de-caju/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/criancas-sem-identidade-o-trabalho-infantil-na-producao-de-castanha-de-caju/#comments Thu, 19 Sep 2013 13:59:21 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1610 Meninos e meninas têm as mãos queimadas por ácido e perdem digitais na quebra da castanha do caju. Mesmo após denúncias, problema persiste no Rio Grande do Norte

Texto e fotos por Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Enviado a João Câmara (RN) – Olhe a ponta do seu dedo. Repare no conjunto minúsculo de linhas que formam sua identidade. Essa combinação é única, um padrão só seu, que não se repete. As crianças que trabalham na quebra da castanha do caju em João Câmara, no interior do Rio Grande do Norte, não têm digitais. A pele das mãos é fininha e a ponta dos dedos, que costumam segurar as castanhas a serem quebradas, é lisa, sem as ranhuras que ficam marcadas a tinta nos documentos de identidade.

O óleo presente na casca da castanha de caju é ácido. Mais conhecido como LCC (Líquido da Castanha de Caju), esse líquido melado que gruda na pele e é difícil de tirar tem em sua composição ácido anacárdico, que corrói a pele, provoca irritações e queimaduras químicas. No vilarejo Amarelão, na zona rural de João Câmara, as castanhas são torradas – além de corroer a pele, o óleo é inflamável – e quebradas em um sistema de produção que envolve famílias inteiras, incluindo as crianças.

colocara uma legenda aqui

Com a pele cada vez mais lisa, as pontas dos dedos perdem as digitais, e as linhas e traços de identidade se esfacelam (clique nas fotos para ampliar)

O óleo é pegajoso. Basta pegar uma castanha e quebrá-la para ficar com a pele manchada por alguns dias. Nem todas as crianças e os adultos que trabalham no processo sabem que o óleo é ácido. Muitos acham que a mão fica assim machucada por conta da água sanitária utilizada para tirar o preto encardido da mão depois de horas seguidas manuseando e quebrando as castanhas torradas. “Se fosse assim, as pessoas que usam água sanitária para limpeza estariam roubadas! É o óleo LCC que tem uma ação irritante, ele é cáustico, produz lesões e chega a retirar as digitais”, explica o médico Salim Amed Ali, autor de diferentes estudos sobre doenças ocupacionais para a Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), do Ministério do Trabalho e Emprego. A perda da identidade não é permanente. Com o tempo, as digitais voltam se a pessoa se afastar da atividade.

Sobrevivência
O médico fez pesquisas específicas sobre a saúde de trabalhadores de unidades industriais de processamento de castanhas de caju e diz que a atividade pode ser considerada insalubre. No caso em questão, em que a produção é totalmente artesanal e as famílias dependem do trabalho para sobreviver, ele destaca quão contraditória é a situação. “A subsistência está calcada em condições de trabalho inviáveis. Para viver, o sujeito precisa se submeter a condições inaceitáveis e as crianças acabam sacrificadas. Não dá para aceitar isso em pleno século 21”, afirma.

Um menino e uma adolescente se revezando ao redor da mesa. A garota é quem cuida do fogo, alimenta a lata improvisada com cascas de castanha e controla as labaredas espirrando água com uma garrafinha. A fumaça sobe e cobre seu rosto. Um cachorro dorme perto do fogo. Eles estão nessa atividade desde a madrugada, começaram às 3 horas. É preciso começar cedo, no sol do sertão nordestino, não dá para continuar com o calor de meio-dia.

Os trabalhos começam cedo, devido ao calor do sertão nordestino; ao meio-dia, o sol é muito forte para prosseguir

O garoto tem 13 anos e, assim como a irmã, cursou até a quarta série do ensino fundamental mas tem dificuldades para ler e escrever. Largou a escola na quinta série porque teria de viajar uma hora de ônibus para ir até uma que atende alunos mais velhos, localizada na área urbana de João Câmara – trabalhar e estudar ao mesmo tempo já é difícil quando a escola é perto; quando não há escolas perto, impossível. Ele quebra as castanhas com agilidade, seus dedos fininhos seguram, selecionam e escapam das pancadas duras.

São poucas as palavras, ambos trabalham em silêncio e as respostas são curtas. Na mesa vizinha, os mais velhos reclamam da falta de água – a que a prefeitura tem entregue para abastecer as cisternas do bairro é salobra. “Dá dor de barriga e aí a gente tem de comprar água de garrafa, vê se pode”, conta uma mulher de 63 anos, que já passou fome e acha melhor que as crianças trabalhem com castanhas do que colhendo algodão ou roçando pasto para o gado, atividades que exerceu quando criança.

Meninas, meninos, pais, mães e famílias inteiras se misturam para organizar a produção das castanhas

Em outra unidade de produção, uma família adapta o ritmo à existência de um recém-nascido. Uma adolescente, também de 15 anos, se reveza com o marido de 18 anos e sai, de tempos em tempos, para amamentar o bebê. “Eu lavo as mãos bem antes de pegá-lo, para não sujá-lo”, conta a mãe, antes de fazer uma pausa às 4 horas. O trabalho costuma ir até as 11 horas e, à tarde, todos trabalham tirando a pele fininha.

O emprego de crianças na quebra da castanha de caju está incluído na lista de piores formas de trabalho infantil, ao lado de atividades como beneficiamento do fumo, do sisal e da cana-de-açúcar. A situação a que estão submetidas as crianças de João Câmara (RN) não chega a ser novidade. A auditora fiscal do trabalho Marinalva Cardoso Dantas, coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador, tem realizado sucessivas ações de fiscalização, denunciado a situação e cobrado soluções. “Não dá para aceitar que as crianças continuem nessa situação, mas não basta reprimir, é preciso oferecer alternativas”.

A representante do poder público reconhece o problema na região, mas admite: “não conseguimos avançar”

Além de identificar as crianças e reunir informações para relatório a ser entregue ao Conselho Tutelar da cidade, ela também tem procurado cobrar providências por parte da prefeitura sobre a situação das famílias. Os programas sociais são considerados insuficientes pelos moradores, que reclamam da atuação do poder público. “Sabemos do que está acontecendo, mas até agora não conseguimos avançar”, admite Maria Redivan Rodrigues, secretária de Assistência Social e primeira-dama de João Câmara, que promete solucionar o problema em um ano, até setembro de 2014. O Brasil se comprometeu a erradicar as piores formas de trabalho infantil até 2015, mas, mesmo com denúncias, situações com a de João Câmara persistem.

Em 24 de fevereiro de 2012, o promotor Roger de Melo Rodrigues, do Ministério Público Estadual, abriu o Inquérito Civil nº 06.2012.00003777-7 após denúncias. “Ele disse que ia processar as famílias, tentou proibir as pessoas de trabalhar, deixou todo mundo apavorado. Foi muito ruim”, diz Ivoneide Campos, presidente da Associação Comunitária do Amarelão. “A fumaça faz mal, a gente sabe, mas as famílias não querem mudar o método com que sempre trabalharam. E não adianta forçar, tem de transformar em querer, ajudar na busca de alternativas”, defende.

Procurado para comentar a reclamação, o promotor negou, em nota, que sua atuação tem sido meramente repressiva. Ele diz que “os problemas relacionados à queima de castanha, tais como impacto ambiental, danos à saúde dos moradores e trabalho infantil, não têm passado desapercebidos do Ministério Público Estadual” e que “em vez de buscar a repressão de delitos relacionados ao caso, esta Promotoria tem priorizado o diálogo com a respectiva comunidade, já havendo sido realizadas duas reuniões no local com todos os interessados e representantes de órgãos municipais, estaduais e federais, objetivando a construção de um consenso para solucionar o caso”.

O promotor reclama, porém, que embora “busque uma resposta adequada e legítima aos problemas, tem enfrentado alguma resistência relacionada ao costume já enraizado, da parte de algumas famílias locais, de proceder à queima de castanhas ao alvedrio dos respectivos danos decorrentes, o que não impedirá uma atuação isenta e efetiva para a resolução do caso”.

Potiguar
Entre as famílias que dependem do processamento de castanhas de caju para sobreviver estão as de um assentamento localizado na região de índios Potiguar, um dos poucos núcleos remanescentes dessa etnia que no passado povoou o estado inteiro. Os ganhos são mínimos. A castanha crua é comprada de pequenos produtores da região de Serra do Mel. Um saco de 50 kg rende, em média, 10 kg de castanha processada. As famílias contam que ganham de R$ 30 a R$ 100 por semana, vendendo a produção a intermediários que revendem em feiras e mercados de cidades.

Assim que as castanhas estão torradas, as mãos se levantam; pancadas quebram uma noz, depois outra e outra, e outra

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O óleo se esparrama em torno das unhas, pela ponta dos dedos e, quando se vê, as mãos inteiras já estão cheias de ácido

“Tentamos identificar quem lucra com isso, mas é um sistema muito primitivo. As indústrias organizaram a produção e estão processando diretamente as castanhas, não identificamos nenhuma envolvida. Os intermediários são pequenos comerciantes que adquirem o produto diretamente com as famílias”, explica o auditor fiscal José Roberto Moreira da Silva.

Criatividade na busca por soluções para as famílias não falta. Nilson Caetano Bezerra, do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador Aprendiz, por exemplo, sonha em fazer parcerias com as empresas de produção de energia eólica, que fazem multiplicar o número de torres de geração na região, para empregar adolescentes como aprendizes. E em providenciar máquinas para que os adultos não tenham de manusear as castanhas torradas. Experiências com mecanização já aconteceram, mas o descasque manual ainda é o preferido porque a taxa de desperdício é menor.

Mesmo que já exista formas de produção mecanizadas, ainda há preferência pelas técnicas manuais, que seriam mais produtivas

Em fevereiro, o juiz Arnaldo José Duarte do Amaral, titular da 9ª Vara do Trabalho de João Pessoa, visitou a comunidade e também encontrou as crianças trabalhando na produção de castanhas. Ele escreveu um artigo sobre a questão e, desde então, tenta articular soluções e envolver mais interessados em resolver o problema. “Quando estive lá como juiz, me perguntavam se ia prender alguém. Não é esse o papel do judiciário, o objetivo não é prender ninguém, é achar solução”, diz, defendendo a formação de cooperativas e mecanismos de economia solidária como o melhor caminho para erradicar o trabalho infantil e melhorar a condição de trabalho dos adultos. “A gente tenta corrigir essas questões há séculos, sem sucesso. Não bastam ações repressivas, que vão além de tentar punir.”

Leia também: Violência crua, um flagrante de trabalho infantil em matadouro

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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“Crianças são mais suscetíveis a infecções” http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/criancas-sao-mais-suscetiveis-a-infeccoes/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/criancas-sao-mais-suscetiveis-a-infeccoes/#comments Thu, 05 Sep 2013 18:02:52 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1531 Especialista alerta para o risco à saúde dos trabalhadores de matadouros que funcionam em condições inadequadas e diz que situação é especialmente delicada para crianças

Texto e fotos por Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Atenção: texto e imagens fortes a seguir 

Enviado a Lagoa de Pedras (RN) – Isabel Cristina Lopes Dias é bióloga e veterinária, e estuda as condições de saúde e trabalho em abatedouros nordestinos. Ela é especialista em Saúde, Meio Ambiente e Segurança e em Engenharia Ambiental, além de mestre em Saúde e Ambiente. Em artigos científicos e estudos específicos, Isabel alerta para a frequente ocorrência de zoonoses envolvendo matadouros, e cobra políticas públicas e ações para minimizar o problema. Procurada pela reportagem, a especialista comentou a situação flagrada em Lagoa de Pedras, no Rio Grande do Norte, destacando a gravidade de crianças estarem submetidas às condições encontradas, e detalhou os riscos e doenças a que estão sujeitos todos os envolvidos.

O fato de crianças estarem envolvidas na prática é um agravante? Em termos de sistema imunológico, elas estão mais sujeitas a infecções?
O envolvimento de crianças precocemente no mundo do trabalho (mesmo que não tenha tantos perigos associados) é por si só um grave problema social. No caso específico de abatedouros, onde o trabalho é considerado insalubre, exaustivo e com vários perigos associados, a situação torna-se mais delicada ainda. Dependendo da faixa etária da criança envolvida, os riscos podem ser maiores ou menores, mas, de modo geral, nesse ambiente de trabalho as crianças estão mais vulneráveis tanto às doenças quanto aos acidentes, pois precisam realizar tarefas e manusear instrumentos desconexos de sua capacidade física e psicológica, justamente em uma fase em que são mais imaturas e ingênuas. A curiosidade natural das crianças também pode levá-las a se envolverem mais facilmente em acidentes ou a contraírem doenças. Quanto ao sistema imunológico, as crianças são mais suscetíveis, tanto às doenças mais comuns como gripes e resfriados quanto às doenças infecciosas, pois é nessa fase que a imunidade está sendo construída. Por isso, para fortalecer o desenvolvimento de suas defesas naturais, as crianças devem realizar, durante esse período, hábitos considerados saudáveis, como dormir e se alimentar bem, estudar e brincar, conviver em ambientes tranquilos e livres de agentes estressores, o contrário do que é verificado em abatedouros. Além dessas implicações mais imediatas (impacto no desenvolvimento do sistema imune) o estresse, o barulho e a repetição, típicos do trabalho em abatedouros, podem também ter consequências graves no desenvolvimento geral da criança, principalmente o psíquico.

Lagoa de pedras

Crianças e adultos trabalham com chinelos ou descalços, caminhando sobre sangue e fezes. Fotos: Daniel Santini

Crianças de 12 anos trabalham com facas afiadas realizando tarefas inadequadas para capacidade física e psicológica. Fotos: Daniel Santini

Crianças de 12 anos trabalham com facas afiadas realizando tarefas inadequadas para capacidade física e psicológica

As pessoas trabalhavam descalças e/ou com chinelos abertos. Trabalhadores caminhavam sobre sangue, fluidos internos e até sobre o conteúdo do intestino dos animais recém-abatidos. Quais problemas de saúde podem acontecer em função dessa prática?
Os principais problemas de saúde dizem respeito às zoonoses, que são doenças transmitidas entre os animais e o homem. Um agente zoonótico pode ser uma bactéria, um vírus, um fungo ou outro agente de doença transmissível, existindo mais de 200 tipos de zoonoses transmissíveis ao homem, segundo dados atuais da Organização Mundial de Saúde. Em abatedouros clandestinos é comum que os animais sejam abatidos sem passar por nenhum tipo de inspeção “ante-mortem”, permitindo que animais doentes sejam encaminhados para o abate com o risco de contaminar os trabalhadores e toda produção com doenças contagiosas, causando danos à saúde e à economia. A desproteção desses trabalhadores e o contato direto e/ou indireto com animais e/ou suas secreções são situações críticas de exposição e transmissão de microrganismos zoonóticos.

Todos, adultos e crianças, manuseavam instrumentos altamente cortantes (machadinhas, facas e cutelos) sem nenhuma proteção para evitar cortes e afins. Muitos relatam acidentes constantes e têm marcas de cortes abertos. Que doenças podem ser transmitidas em função desse comportamento?
Em virtude da exposição a diversos perigos, a atuação na indústria de carnes é considerada internacionalmente como trabalho perigoso. Inúmeros trabalhadores no mundo inteiro se ferem e vários morrem todos os anos devido a acidentes nos locais de trabalho. Problemas ocupacionais importantes estão relacionados a lesões de membros superiores, casos em que a manipulação de material perfuro-cortante (utilizado na maioria das etapas de abate) é o agente de risco de acidente de maior relevância, sendo a faca e afins instrumentos responsáveis por parcela significativa dos acidentes de trabalho registrados nesta ocupação. Como medida preventiva, deveria ser adotado o uso do equipamento de proteção individual – EPI, pois, conforme dispõe a Norma Regulamentadora – 6, do Ministério do Trabalho e Emprego, a empresa é obrigada a fornecer aos empregados, gratuitamente, EPI adequado ao risco, em perfeito estado de conservação e funcionamento. Apesar da obrigatoriedade, essa situação não se verifica nos locais de abate.

Trabalhador descalço no matadouro. Problemas de saúde e acidentes de trabalho são constantes entre adultos e crianças do setor

Trabalhador descalço no matadouro. Problemas de saúde e acidentes de trabalho são constantes entre adultos e crianças do setor

Trabalhadores com lesões e feridas nas mãos devem ser afastados da função e evitar o contato direto com a carne, uma vez que isso pode facilitar tanto a contaminação da carne que está sendo manipulada como a infecção do trabalhador, pela entrada de micro-organismos zoonóticos através das lesões. Alguns problemas relacionados com agentes biológicos zoonóticos podem ser lesões de pele, pelo antraz e vaccinia; febres, ocasionadas por brucelose e Chlamydia spp. no abate de frangos; ocorrência de doenças entéricas como a salmonelose – que além do risco de infecção aguda, também pode causar artrite reativa pós-infecção –, campilobacteriose e yersinose; toxoplasmose ocasionada pelo contato direto com Toxoplasma gondii; tuberculose ocasionada pelo Mycobacterium bovis por inalação de aerossóis ou acometimento cutâneo – contato direto com carcaças contaminadas; surtos de leptospirose e vírus Nipah (essas doenças podem afetar trabalhadores que entram em contato com grandes volumes de urina durante o trabalho nas indústrias de carne).

As diferentes partes dos bois recém-abatidos ficam espalhadas pelo matadouro, que é aberto e sem nenhuma proteção. As fezes armazenadas no intestino são derramadas a não mais do que um metro da carne que será cortada e distribuída para consumo. Qual o risco de contaminação?
A legislação que regulamenta o funcionamento desses estabelecimentos, quer seja a nível federal, estadual ou municipal, requer infraestrutura e procedimentos higiênico-sanitários mínimos. Como exemplos de padrão mínimo exigido para funcionamento, primeiramente, o estabelecimento deve ser afastado dos limites das vias públicas; as vias e pátios internos devem ser pavimentados; pisos e paredes convenientemente impermeabilizados com material adequado, construídos de modo a facilitar a coleta e afastamento das águas residuárias; mesas de aço inoxidável; rede de abastecimento de água e, quando necessário, tratamento de água; câmaras frias segundo a capacidade do estabelecimento, para armazenamento adequado da carne; carros de transporte da carne com sistema de refrigeração, dentre outros. Quando essas medidas mínimas não são respeitadas, o risco de contaminação da carne que está sendo manipulada é elevado, revestindo-se de importância em saúde pública, com perigos para a população consumidora em geral.

Homem abre e limpa intestino ao lado de onde garoto corta carne do boi

Homem abre e limpa intestino ao lado de onde garoto corta carne do boi

Após serem cortadas e separadas, patas dos boi são transportadas em carrinho de mão

Após serem cortadas e separadas, patas dos boi são transportadas em carrinho de mão

Leia também: Violência crua, um flagrante de trabalho infantil em matadouros

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Orçamento de meio milhão para novo matadouro está parado http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/orcamento-de-meio-milhao-para-novo-matadouro-esta-parado/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/orcamento-de-meio-milhao-para-novo-matadouro-esta-parado/#comments Thu, 05 Sep 2013 18:02:47 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1551 Prefeito promete providências para acabar com trabalho infantil e alega que licenciamento atrasou novo matadouro municipal. Órgão responsável diz que não há registros de pedido 

Texto e fotos por Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Atenção: texto e imagens fortes a seguir

Enviado a Lagoa de Pedras (RN) – Desde 21 de janeiro de 2013, a Prefeitura de Lagoa de Pedras, cidade do interior do Rio Grande do Norte onde crianças trabalham no matadouro municipal, conta com um orçamento de R$ 502,125,00 para a construção de um novo abatedouro graças a convênio com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. O projeto prevê a construção de instalações sanitárias adequadas, estação de tratamento de água e capacidade para 60 abates por semana (atualmente, segundo o informado pela Prefeitura ao Governo Federal, em média 42 animais são mortos todos os domingos). O dinheiro, no entanto, está parado.

O prefeito Raniere Cesar Amâncio da Silva (DEM) afirma que a demora deve-se ao processo de licenciamento ambiental, que, segundo ele, está sendo feito em conjunto com o Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Norte (Emater). A reportagem entrou em contato com o departamento responsável pelo licenciamento de abatedouros do Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte, que informou que não há registro de entrada de pedido de licenciamento para a obra, nem diretamente, nem em parceria com a Emater.

Questionado sobre o número de protocolo do pedido de licenciamento, o prefeito afirmou que, por estar em Natal, não tinha essa informação, mas garantiu que o pedido foi feito e que o novo matadouro ficará pronto até setembro de 2014. “O matadouro atual está realmente em péssimas condições, e temos de reconhecer que houve um erro [em relação ao trabalho infantil]. Vamos tomar providências imediatamente. Já aconteceu outras vezes, proibimos o pessoal, mas qualquer vacilo que a administração dá e os meninos voltam. É igual criança de rua, a gente tira, mas eles voltam”, diz o prefeito, que afirma que, além de reprimir, a prefeitura oferece programas sociais, com psicólogos e assistentes sociais.

Meninos de 12 anos trabalham cortando bois no matadouro municipal

Meninos de 12 anos trabalham cortando bois no matadouro municipal. Fotos: Daniel Santini

Sangue, carne e fezes espalhados colocam em risco saúde de crianças e adultos

Sangue, carne e fezes espalhados colocam em risco saúde de crianças e adultos

“Temos de tentar o máximo de soluções para acabar com isso. A gente orienta, mas o povo é difícil. A dificuldade que nós temos como gestores de municípios pequenos, de forma geral, são os pais. Eles proíbem os filhos de frequentar os programas que executamos”, afirma.

Problema regional
O emprego de crianças e adolescentes em matadouros está longe de ser exclusividade de Lagoa de Pedras. A auditora fiscal Marinalva Cardoso Dantas, que comandou a ação na cidade, já fiscalizou e registrou trabalho infantil em matadouros dos municípios de Acari, Bom Jesus, Caicó, Cruzeta, Currais Novos, Itaú, Jardim do Seridó, João Câmara, Lagoa Nova, Nova Cruz, São Paulo do Potengi, Tangará, Touros e Vera Cruz, entre outros. A estratégia de cobrar prefeitos, e, em alguns casos, em parceria com o Ministério Público Estadual, até responsabilizá-los judicialmente com abertura de processos, tem dado resultados.

Além de visitar Lagoa de Pedra, a reportagem esteve também no abatedouro de Brejinho (RN), onde ouviu relatos sobre o emprego de crianças e adolescentes na atividade, e no município de João Câmara (RN), um dos flagrados com trabalho infantil em matadouros em 2008.

Apesar do aviso de que é proibida a presença de crianças, feirantes relataram que os meninos costumam ficar no terreno ao lado do abatedouro de Brejinho (RN), esperando para trabalhar nos restos dos bois

Apesar do aviso de que é proibida a presença de crianças, feirantes relataram que os meninos costumam ficar no terreno ao lado do abatedouro de Brejinho (RN), esperando para trabalhar nos restos dos bois

O "fateiro" Reginaldo Raimundo da Silva ao lado dos escombros onde antes funcionava o antigo abatedouro municipal de João Câmara (RN), desativado após denúncia. Foto: Daniel Santini

O “fateiro” Reginaldo Raimundo da Silva ao lado dos escombros onde antes funcionava o antigo abatedouro municipal de João Câmara (RN), desativado após denúncia. Foto: Daniel Santini

Neste último, após a denúncia, o abatedouro público irregular foi desativado e destruído. No matadouro atual de João Câmara (RN), construído longe do centro urbano, são os adultos que trabalham como “fateiros”. “As condições mudaram muito, usamos equipamentos e é tudo muito mais limpo”, conta Reginaldo Raimundo da Silva, 36 anos, ao lado dos escombros em que funcionava o antigo matadouro. Ele conta que trabalha limpando tripas de bois na cidade desde os 10 anos de idade. “Agora estou recebendo um salário e comecei a cursar o ensino médio. Quero ser professor”, sonha.

Leia também: Violência crua, um flagrante de trabalho infantil em matadouro

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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