Tortura e escravidão em caso de trabalho doméstico infantil

Justiça condena empregadora por abusos durante quase três anos. Vítima sofreu violência física, trabalhou sem receber e foi impedida de estudar ou ver a mãe

Por Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil

A 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) condenou, em 18 de julho, Maria Aparecida da Rocha a 6 anos e 8 meses de prisão em regime inicial semiaberto, por torturar e reduzir à condição de escravo uma adolescente dos 15 aos 18 anos. A decisão foi publicada na última segunda-feira (22). Segundo a denúncia do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) que culminou na condenação, a menina foi vítima de abusos físicos e mentais enquanto prestou serviços domésticos à condenada no período entre 2004 e 2007, na região administrativa de Riacho Fundo II, ao sudoeste de Brasília (DF).

A jovem, com então 15 anos de idade, teria deixado sua cidade natal, Santo Antônio do Descoberto, em Goiás, para ir trabalhar na casa da Maria Aparecida da Rocha, em agosto de 2004. Até fevereiro de 2007, a adolescente sofria ameaças verbais e violência física, sendo vítima de lesões provocadas por facas e alicates. Depois de três tentativas, ela conseguiu deixar o local após contatar seu tio, que imediatamente acionou a polícia. Junto dele, ela foi para Teresina, no Piauí.


Percurso entre a cidade da vítima e a casa em que foi escravizada. Exibir mapa ampliado

De acordo com o MPDFT, durante esse período de quase três anos a empregadora teria impedido que a jovem deixasse a residência em que trabalhava e pudesse ver a própria mãe. Ainda segundo a denúncia, os serviços nunca eram remunerados, e o acesso à escola, proibido. Há relatos de que a acusada usaria da menina também para oferecer serviços a outras residências.

Em declaração à Justiça, a vítima relata sucessivos abusos e agressões pelas quais passava. “A acusada, diariamente, por qualquer pequeno motivo ou pretexto, passou a surrá-la”, descreve o depoimento. Fios, facas e martelos teriam sido utilizados para provocar golpes desde o pescoço até as costas da adolescente. A menina começava a trabalhar todo dia por volta das duas da manhã, quando era acorda por agressões. Por não conseguir descansar tempo suficiente, ela conta que ficava o dia inteiro sonolenta, e isso seria motivo de ainda mais violência.

Trabalho doméstico infantil

O trabalho doméstico está previsto na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), criada pelo decreto 6.481 assinado em junho de 2008 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com base na Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em setembro de 2011 haviam pouco mais de 250 mil crianças e adolescentes exercendo atividades do tipo por todo o Brasil: 67 mil na faixa de 10 a 14 anos, e 190 mil na faixa de 15 a 17 anos.

Desse total, pelo menos 90% seriam do sexo feminino.


Vídeo institucional do Ministério Público do Distrito Federal contra trabalho infantil

Defesa
Contra os argumentos da promotoria, a ré alegou insuficiência de provas para a condenação, mas a Justiça não aceitou a apelação. Os magistrados mantiveram, na íntegra, a decisão condenatória proferida em primeira instância, e não acataram o recurso interposto pela defesa de Maria Aparecida da Rocha.

Para o desembargador Roberval Belinati, relator da condenação, os laudos de corpo de delito e as fotos anexadas nos autos da denúncia não deixam dúvida dos abusos cometidos contra a jovem. “As provas comprovam que a vítima foi submetida a ilegal e intenso sofrimento físico e mental, durante vários anos, como forma de castigo pessoal, em condições degradantes de alimentação, acomodação e trabalho, sem receber qualquer remuneração”, assinalou.

O magistrado observa, além disso, que a acusada manteve a menina presa e sem acesso a comunicação. “Além do trabalho excessivo, a acusada ainda a impedia de se comunicar com a família, restringindo sua liberdade de locomoção”, acrescenta.

Tortura e trabalho escravo

Restrições à liberdade de ir e vir e trabalho forçado são duas definições previstas para as formas de escravidão contemporânea, tipificadas no artigo 149 do Código Penal brasileiro. A pena prevista pela lei prevê reclusão de dois a oito anos, bem como multa. Em casos em que a exploração de mão de obra análoga à de escravo envolve vítimas com menos de 18 anos, a punição é aumentada da metade.

Na última atualização do cadastro de empregadores flagrados com o uso de trabalho escravo, a “lista suja” do trabalho escravo, mantida pelo governo federal, há pelo menos oito casos em que o crime de reduzir pessoas à escravatura aparece junto da exploração de crianças e adolescentes.

O crime de tortura, por sua vez, está prescrito na lei 9.455/1997, sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. A prática é inafiançável e não anistiável, além de ser considerada crime hediondo e contra a humanidade. Para casos em que as vítimas são crianças, adolescentes, gestantes, idosos ou pessoas com deficiência a pena é aumentada em um sexto a um terço do total determinado pela Justiça.

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Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Inclusões em ‘lista suja’ reforçam o elo entre escravidão e trabalho infantil

Atualização de cadastro federal com empregadores que utilizaram mão de obra escrava tem pelo menos oito nomes de empregadores que também se beneficiaram da exploração de crianças e adolescentes, em atividades consideradas entre as piores formas de trabalho infantil

Por Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil

Serviços forçados, submissão a condições degradantes de vida, jornadas exaustivas, restrições à liberdade de ir e vir e todas as demais situações características da escravidão contemporânea não são formas de violência que têm por alvo exclusivo homens e mulheres adultos. Fiscalizações com o objetivo de investigar o emprego de mão de obra análoga à escrava também encontram com frequência crianças e adolescentes sujeitas a tais violências.

De acordo com levantamento da Repórter Brasil, a atualização ocorrida em 28 de junho do cadastro de empregadores flagrados explorando pessoas em condição análoga à de escravatura, a chamada “lista suja” do trabalho escravo, contém, num total um de 142 novos nomes incluídos, a participação de pelo menos oito deles em casos de exploração laboral infantil. Mantida em conjunto pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), a relação é considerada uma das mais importantes ferramentas na luta pela erradicação da escravidão contemporânea no Brasil.

Muitas vezes, fiscalizações que investigam o uso de mão de obra escrava encontram também casos de trabalho infantil. Foto: Leonardo Sakamoto

No total, a “lista suja” do trabalho escravo conta com 503 nomes (clique aqui para ver a tabela completa). A relação vem sendo atualizada semestralmente, desde o final de 2003, e reúne empregadores flagrados pelo poder público na exploração de mão de obra em condições análogas à escravidão. O cadastro tem sido um dos principais instrumentos no combate à prática, através da pressão da opinião pública e da repressão econômica. Após a inclusão do infrator, instituições federais, como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e o BNDES suspendem a contratação de financiamentos e o acesso a crédito. Bancos privados também estão proibidos de conceder crédito rural aos relacionados na lista por determinação do Conselho Monetário Nacional.

A inclusão de oito empregadores flagrados com o uso da mão de obra de crianças e adolescentes entre os 142 novos nomes reforça o elo entre as formas contemporâneas de escravidão e o trabalho infantil. Segundo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), publicado em 2011, cerca de 90% do montante de adultos sujeitos à escravatura em território brasileiro até aquele momento haviam começado a trabalhar antes dos 16 anos de idade.

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Algumas das piores formas de trabalho infantil aparecem na atualização da ‘lista suja’. Foto: Marinalva Cardoso Dantas / SRTE/RN

Lista TIP e trabalho escravo
Em alguns dos casos em que a exploração infantil ocorre concomitante às formas de escravidão contemporânea, os serviços desempenhados por jovens, não raro, coincidem, por um lado, com aquelas descritas na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP). Com as bases lançadas em 1999 pela Convenção 182 da OIT, a Lista TIP passou a valer no país em 2008, a partir do decreto número 6.481, assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na relação, constam 89 atividades, com suas descrições e consequências para a saúde de crianças e adolescentes que as desempenham.

A legislação brasileira define o emprego de escravos como crime, previsto no artigo 149 do Código Penal. E, quando a prática incide sobre crianças e adolescentes, a pena aos infratores é mais severa. Para aqueles que utilizarem de mão de obra escrava, espécie de violação dos direitos humanos no interior das relações trabalhistas, a punição prevista é a de prisão por um período de até oito anos, além de multa, conforme a gravidade da violência praticada.

Nas recentes inclusões no cadastro federal de empregadores com trabalho escravo há a ocorrência, por mais de uma vez, de alguma das piores formas de exploração infantil previstas na Lista TIP.

Suja, e nas piores formas
Adelson Souza de Oliveira está na “lista suja” do trabalho escravo devido ao flagrante de quatro trabalhadores em situação análoga à de escravo, ocorrido em 2007, na Fazenda Verena II, no município de Novo Repartimento, no Pará. À época, o empregador era o então prefeito da cidade de Iaçu, na Bahia, pelo PMDB. Um pai e seus três filhos, um deles com menos de 17 anos, eram responsáveis pela limpeza do pasto do rebanho bovino criado na propriedade. Segundo a Lista TIP, a atividade desempenhada pelo adolescente, na ocasião, poderia lhe provocar cortes, perfurações e lhe expunha ao risco de doenças ou outros acidentes, pelo contato próximo a animais.

Foto SRTE/MA

Na fazenda pertencente à Líder Agropecuária, crianças bebiam a mesma água usada por animais. Foto: SRTE/MA

No desempenho de serviços semelhantes, e sujeito aos mesmos riscos, um grupo de sete pessoas, entre as quais crianças, foi resgatado da escravidão, em 2012, em uma área pertencente à empresa Líder Agropecuária – incluída na “lista suja” e que tem como um dos sócios o deputado estadual Camilo Figueiredo (PSD/MA). A água que o contingente libertado utilizava, para banho e consumo, era a mesma da qual os animais da Fazenda Bonfim, na zona rural de Codó, no Maranhão, bebiam.

O parlamentar maranhense, no entanto, não é o único político nessa situação. O deputado federal Urzeni de Rocha Freitas Filho (PSDB/RR) consta na “lista suja”, acrescido também ao fato de ter se beneficiado de trabalho infantil, segundo o Ministério Público Federal em Roraima (MPF/RR).

Entre um grupo de 16 resgatados sob responsabilidade de Sérgio Luiz Xavier, havia um adolescente com 16 anos de idade responsável pela aplicação de agrotóxicos. Conforme a Lista TIP, esse tipo de serviço, em contato com venenos, pode provocar desde problemas respiratórios até, em casos mais graves, doenças cardíacas. Então proprietário da Fazenda Terra Roxa, localizada em Cumaru do Norte, no Pará, o empregador entra para a “lista suja” por conta desse flagrante de trabalho escravo ocorrido durante o ano de 2006.

Outro episódio em que os empregos de trabalhos infantil e escravo aconteceram conjuntamente foi tema de reportagem publicada este ano. Juntamente a um grupo de 34 resgatados, todos imigrantes vindos do Paraguai, sete adolescentes trabalhavam na colheita de mandioca, na Fazenda Dois Meninos, de propriedade de Cleber Geremias, em Naviraí, no Mato Grosso do Sul. Na ocasião, depois de libertados da condição de escravo, a Polícia Federal (PF) notificou os estrangeiros a deixar o país. A ação da PF foi alvo de polêmica e contrariou medidas de acolhimento a migrantes vítimas da escravidão, ratificadas pelo Estado brasileiro.

Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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